sexta-feira, dezembro 29, 2006

Da série "diálogos"

- Incenso não é coisa de cristão não.
- Ué, um dos reis magos não levou incenso de presente pelo nascimento de Jesus?
- Ah, mas o cheiro devia ser diferente.
- ...

quinta-feira, dezembro 28, 2006

mantra



Foi a trilha sonora pra alguns dos melhores momentos de 2006. Ele canta como se tivesse beijando na boca. E eu queria que fosse a minha boca.

quarta-feira, dezembro 27, 2006

Quem sabe de mim...

Nossas conversas duram horas, o que dizemos é sempre cheio de não-ditos, e eu gosto disso. Quando nos conhecemos, não podíamos nos confessar muitas coisas, por mil razões, e de repente os mistérios e as parábolas se tornaram o que de melhor oferecíamos um para o outro. Nunca estou preparada pras suas palavras, não exatamente pelo que ele diz, mas porque ele sempre quer dizer muito mais. E eu gosto disso. Gosto de não saber aprisionar as pessoas que amo nos meus critérios, conceitos e verdades.

Ele me repete a frase que mais ouço na minha vida: “Você pensa demais”. E vai além, me questiona, me adivinha. Eu nunca sei se quando ele me adivinha é por me saber de sentir mesmo, ou por ter informações a meu respeito, ou porque eu goste de me fazer caber nas idéias que ele tem de mim. Mexe com a minha capital e pecaminosa vaidade. Porque eu queria ser como ele me vê, e acabo acreditando que sou. E todas as vezes que isso acontece, me vejo caindo em mais uma armadilha, e então vejo que gosto das armadilhas.

Ele me diz que não pertenço a este lugar, e me faz bem acreditar. Acha que eu sou uma fêmea tão forte e tão fêmea que assusto, e eu considerei essa uma explicação poética pra minha solidão. Me diz que eu devia acabar com todos os teatros, deixar de querer parecer o que for e compreender o impacto de ser eu mesma. “Esqueceram de te dizer isso, mas você precisa saber que é fantástica”, ele me conta. E ele sabe o que faz quando faz assim.

domingo, dezembro 24, 2006

CDR - Parte 3

“Tenho te observado todas as noites”, me revelou, repetindo aquela voz rouca, aquele bafo quente, aquele cheiro de cigarro...

O estranho acabara de assaltar meu posto, inverter minha ordem, trocar meu papel. Eu me fazia de invisível, de distraída, pra poder ver e ouvir. E, de repente, um homem de chapéu e lenço vermelho estava ali, diante de mim, me dizendo que eu era a observada. Talvez eu fosse personagem de suas histórias. Mas o que eu inspiraria? Como ele me descreveria? O que em mim chamaria sua atenção?

Ele interrompeu meus pensamentos se apresentando. Se chamava Gerônimo, com G porque o funcionário do cartório assim decidiu, passando por cima da preferência do pai pelo nome com J. Era também Heleno, em homenagem à sua mãe. Gerônimo Heleno. Mais de 50 anos de jornalismo, não me disse quantos de vida exatamente, e eu não perguntei.

(continua...)

sábado, dezembro 23, 2006

Presente adiantado

Papai Noel e Do-Céu, eu, hoje, só queria ler meu novo livro. Mas desde às 8h30 da manhã está rolando uma festa de confraternização do lado da minha casa. Eu saí do jornal ontem/hoje à uma e meia, cheguei em casa quase três, fui dormir quase quatro. O som, superpossante, não só me acordou como me impede de dormir ou viver hoje.

Eu, numa atitude extrema, liguei pra Polícia. Com tanto caso de polícia, parece até que esse nem é. Eu, bestamente, só consegui pensar que na Holanda isso jamais aconteceria. E não porque a polícia lá seja mais eficiente, não, é que as pessoas tem mais senso de coletividade mesmo. Sim, eu pensei isso. Bestamente, eu sei. E liguei pra polícia, e fui muito bem atendida, pra minha surpresa. Eles me pediram que tentasse um acordo antes, o que eu julguei pertinente. Mas descobri que, neste momento, eu sequer sei como me aproximar dessa patuléia maleducada e, hoje especialmente, bêbada. Meu pai, genial como sempre, me fez ver um outro lado, assim que eu comecei o meu discurso de "na Holanda-França-Inglaterra-Dinamarca-Argentina-raio-que-o-parta-não-seria-assim". "Eles é que são revolucionários", mandou seu Artur. "Colocam o som nesta altura pra desafiar, porque sabem que ninguém reclama, nem se mobiliza, nem reage". A atendente da polícia confirmou que era a primeira reclamação, apesar de eu morar num prédio de 15 andares, 4 moradores por andar.

Há outras vozes em mim. Nunca me imaginei pensando/dizendo/escrevendo certas coisas e, hoje, estou aqui, reacionária que só, pra minha surpresa e me sentindo cheia de razão.

Eu tentei ser zen, tranqüila, amorosa. Mas meu destino é brigar, não dá pra fugir disso. Então, Papai Noel, Do-Céu, Da-Terra, Da-Água, Do-Fogo e Da-Justiça, dai-me força, calma e paciência pra esbravejar bastante nessa vida. Porque muitos ainda não estão preparados pro amor e pra beleza.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Da vaidade de ser burra

Meu pecado capital sempre foi a vaidade. Intelectual, especificamente. Queria respeito, e mesmo admiração, pelas minhas idéias, divagações, projetos, histórias e sonhos; ainda que eu mesma mal digerisse minhas próprias idéias, divagações, projetos, histórias e sonhos. Coincidência ou não, sempre fui tida como alguém inteligente, muitas vezes sem precisar abrir minha boca, o que me deixava tão vaidosa quanto intrigada – afinal, uau!, meus neurônios regados a ovomaltine deviam espirrar no ar e induzir as pessoas ao veredicto que me favorecia. No entanto, acho hoje que a explicação é muito simples. Eu provavelmente me esforçava pra fazer cara de conteúdo. E acabava colando.

Tem um problema nisso tudo. “A porta do inferno é larga, do céu é estreita”, tá escrito na Bíblia há séculos (mesmo!). “Toda unamidade é burra!”, bradou Santo Nelson. E a conclusão: eu não só fazia pose, como precisava mantê-la, tudo pra ter, no fim das contas, um rótulo garantido por unanimidade. Uma conquista preocupante...(Me lembrei do conceito de tirania, sobre o qual escrevi num blog velho que anda perdido nessa virtualidade sem porteiras).

Pensando bem, eu querer me sentir “a mais inteligente” é de um egoísmo muito grande. Porque no dia em que, apesar de todo o meu esforço pra fazer cara de conteúdo, eu for considerada medíocre (pelo menos!), isso significará que, em termos comparativos, a humanidade anda menos imbecil. Motivo de comemoração!

Pois enquanto isso não acontece, eu ando me divertindo com um novo pecado: parecer uma / fazer cara de burra. Já comecei cortando a franja, porque imagem é tudo e vi que convenço mais (me pareceu, simplesmente) sendo uma burra de testa parcialmente coberta. Vai ver influenciada por dizeres dos tempos da infância, quando as testudas da escola respondiam às zombarias alegando que a protuberância era sinal de inteligência (alguém aqui se lembra disso?).

Que sensação de liberdade... já começo a colecionar uns olhares de desdém. São zeros estatísticos, bem verdade, mas é que ainda estou em fase de aperfeiçoamento. Minha meta é, com uma atuação restrita e localizada, chegar à unanimidade inversa àquela que outrora desejei. A ambição me parece cheia de sentido. Vamos ver no que dá. Por enquanto, me sinto ótima.

Contos de redação - Parte 2

O meu trabalho me permitia alimentar os vícios prediletos: olhar para as pessoas sem que me notassem e ouvir conversas alheias de forma insuspeita. Alguns rostos me chamavam mais a atenção. O daquele editor de aparência engraçada, por exemplo. Ele me lembrava um personagem de desenho animado: baixo, cabelos claros, barrigudo. Seu sotaque era indefinível, apesar de que, até onde eu sabia, ele morava no Rio desde sempre. Seu humor de maníaco bipolar me divertia mais que espantava, apesar da maneira assustadora como oscilava. Dele, eu ouvia verdadeiras pérolas.

Havia também a fotógrafa sexy que hipnotizava ao passear pela redação: com uma câmera na mão e belos decotes nos peitos. Eu nunca pude explicar de onde vinha minha excitação por fotógrafos, até o dia em que a vi. Descobri, então, que o que me excitava eram as câmeras e as fálicas lentes, não as pessoas por detrás delas. Quem já reparou na maneira como um fotógrafo, ou fotógrafa!, segura o seu instrumento de trabalho, há de me entender.

Outra das minhas caricaturas favoritas era aquele repórter que se julgava engraçado. Sempre perdia alguns momentos olhando pra ele e, ouvindo suas piadas, eu imaginava sua adolescência de garoto feioso desprezado pelas menininhas da escola, mas que um dia descobriu que podia conseguir alguma coisa se fazendo de inteligente e dono da verdade. Daí até virar jornalista foi um pulo, provavelmente. Com esses pré-requisitos, formação vira detalhe.

O editor-chefe da voz bonita também fez com que eu pensasse num menino míope e gorducho do passado que tentou achar soluções para a rejeição das belas. Neste caso, o resultado agradava. Sempre acreditei no potencial dos que, longe de serem considerados obviedades estéticas, precisavam apelar pra justiça da lei da compensação. Cegos desenvolvem melhor tato e olfato, não é assim? Pois conheci muitos homens de beleza ululante, mas nunca eram eles os mais charmosos, mais engraçados ou donos das melhores vozes.

Ah, a voz... a dele me trouxe a lembrança improvável do narrador de filme dublado da Sessão da Tarde de tempos idos. Ecoava por toda a redação. Evitei, durante algum tempo, olhar de verdade para o dono da voz, que estava sempre próximo. Nisso, a minha miopia foi cúmplice. É que aquela voz, assim, só ouvida, me evocava imagens que podiam acabar desmentidas demais, negadas pela realidade. Não queria saber do homem: sua voz me bastava. Eu não queria a realidade, não ali, pelo menos. Desejo feito de ironia e contradição...

(Continua no próximo domingo, véspera de Natal)

sábado, dezembro 16, 2006

Contos de redação – Parte 1

Por mais uma noite os ponteiros se esbarraram lá no alto, no número 12, e me veio o pensamento costumeiro: “falta mais uma hora”. Era começo de semana e madrugada de Rio de Janeiro tranqüilo-na-medida-do-possível. Na redação, os gatos-pingados de sempre. Por isso, me assustei com a presença estranha, quando ouvi aquela voz rouca, que me chegou aos ouvidos precedida pelo bafo quente na nuca e o cheiro de cigarro. “Boa noite”, me disse.

Não pude responder ao cumprimento. Ao invés disso, busquei ao redor olhares estupefatos e cúmplices do meu. Nada. Ninguém parecia notar aquele homem de chapéu que passara dos 70, metido num terno azul-marinho de corte démodé, com um lenço vermelho que transbordava cafona do bolso direito do paletó.

Com um sorriso meio de lado, que fez balançar o cigarro apagado feito uma antena de barata, ele parecia debochar do meu estupor. “Tenho te observado todas as noites”, me revelou, repetindo aquela voz rouca, aquele bafo quente, aquele cheiro de cigarro...

(Continua no próximo post)

terça-feira, dezembro 12, 2006

Me falta perder?

Eu ando assim. Não tenho medo da morte. Não sinto saudade de bons tempos passados. Meu coração já não conhece mágoa de ex-amores. O muito que me falta não me aborrece mais. Há muito deixei de acreditar que alguma vez perdi tempo. Não li todos os livros que gostaria e isso nem me angustia. Muitos filmes entram e saem de cartaz sem que eu os assista e o mundo não acaba por causa disso, como costumava acontecer (sim, o mundo já acabou várias vezes).

Estou viva. Mas só hoje. As de ontem morreram, há tempos. Tempos que dependem de cada ontem. “A cada dia basta o seu mal” e a cada ontem basta a sua morte. Foram defuntas que amaram aqueles tantos amores. Levaram, em suas mortes, as mágoas. Hoje vivo, logo também sobrevivo, sem grandes mistérios ou aborrecimentos. Todos os dias ganho tempo, até eu perder de vez todo o tempo que um dia me foi dado. Posso ler incansavelmente até que todo o meu tempo ganho seja perdido - e isso é fantástico. Eu vivo, e se vivo é porque o mundo não acabou, e vai continuar aí, inspirando muitos filmes.

Eu acho que nunca perdi de verdade.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Mais coletânea de pensamentos

"Ninguém dirige a quem Deus extravia". -- Raduam Nassar

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"Deus come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o prato". -- João Guimarães, meu velho Rosa, em seu Grande Sertão.

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"Agüenta eu te dizer que Deus não é bonito. e isto porque Ele não é nem um resultado nem uma conclusão, e tudo o que a gente acha bonito é às vezes apenas porque já está concluído. Mas o que hoje é feio será daqui a séculos visto como beleza, porque terá completado um de seus movimentos". -- Clarice Lispector, Santa Clarice, em Paixão segundo G.H.

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"... se se dá num homem a fé em Deus unida a uma vida de pureza e elevação moral, não é tanto porque crer em Deus o faça bom, quanto porque ser bom, graças a Deus, o faz crer Nele. A bondade é a melhor fonte de clarividência espiritual". -- Miguel de Unamuno, Do sentimento trágico da vida.

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"Há, então, Senhor meu Deus, algo em mim que te possa conter? E o céu e a terra, que fizeste e nos quais me fizeste, são eles capazes de te conter? Ou então, visto que sem ti nada existe daquilo que existe, será que tudo que existe te contém? Portanto, já que eu de fato existo, por que tenho de pedir tua vinda a mim, a mim que não existiria se não existisses em mim?" -- Santo Agostinho, em suas Confissões

terça-feira, dezembro 05, 2006

Maluco beleza

Meu pai entra no quarto afobado, intrigado com o sumiço de seu copo de leite.

- Você jogou fora, minha filha?

- Não. Eu lá vou jogar fora o teu leite, pai!?

- Mas sumiu e eu quero uma explicação.

- Você deve ter bebido ou jogado fora.

- Não, eu não sou maluco!

- Então a maluca sou eu, é isso?

- Olha, eu não vou brigar com você se me disser que jogou fora. Até prefiro que me conte duma vez.

- Mas eu não joguei fora.

- Vou na cozinha contar os copos.

(E ele vai, efetivamente, contar os copos...)

- Tá vendo? O copo está aqui, só que vazio, dentro da pia. Fica tranqüila, não vou brigar com você, tá? Não quero arrumar confusão. Eu sou da paz.

- ...


Lição do dia: maluco é aquele que não convence.

sábado, dezembro 02, 2006

Smiths

"If you're so funny
Then why are you on your own tonight?
And if you're so clever
Then why are you on your own tonight?
If you're so very entertaining
Then why are you on your own tonight ?
If you're so very good-looking
Why do you sleep alone tonight?
I know ...
Cause tonight is just like any other night
That's why you're on your own tonight
With your triumphs and your charms
While they're in each other's arms...
"

sábado, novembro 25, 2006

Sou um animal sentimental (no cio)

Do princípio da realidade dinâmica: há um mês atrás comentava com a Déia, em Londres, as preocupações (profissionais) em relação à minha chegada ao Brasil. Segunda-feira passada, vivi o meu primeiro dia de trabalho na redação de um grande jornal carioca.

Ontem pela manhã, ainda em casa, chorei. Pensei no Lucas, em Amsterdã, nas tantas vezes que ele me pediu colo e quis brincar com o “cacaco” (se referindo a um CD interativo do “Mico Maneco”, da Ana Maria Machado) e eu ocupei o computador com preocupações, mandando e-mails, estabelecendo contatos, pra conseguir um porto seguro quando voltasse para o Brasil.

Choro de susto, por constatar uma dor que pouquíssimas vezes (e agora não me vem um exemplozinho sequer) se materializou na minha alma: arrependimento. Dor do não vivido, parando pra pensar, sempre foi algo estranho à minha natureza. Agora essa... eu, que sempre me repito a existência apenas do presente, da vida aqui, do “mundo bem diante do nariz”, eu, um grande arroto de frases feitas e fáceis, deixei de aproveitar abraços e sorrisos que me apareceram. Tudo por dúvidas que, no tempo certo, se dissiparam. Eu, tão jovem, ainda não aprendi a dar ouvidos de verdade àquele velho moribundo que vez e outra fala comigo, aquele sábio senhor que tantas vezes me aconselhou a colher o presente com as mãos enquanto o porvir espera por seu tempo de maturação.

O Lucas é, certamente, dos exemplos o mais dolorido. Mas eu também ocupei aquele sofá em Paris com minhas incertezas, chorando no colo do Gui. Ele, que acumulou tantas perdas no seu breve caminho de 29 anos, que aos 14 viu a mãe morrer na piscina da própria casa, que aos 20 perdeu o pai pro câncer, ele nunca parecia entender minha gravidade. E eu desdenhava da descompreensão com uma justificativa fácil: “Ele é francês”.

Comecei a sexta-feira, então, me prometendo vida desde já. Nada de planos para o próximo ano, ou para segunda-feira, ou amanhã. Lembrei das palavras da Lu sobre a virgindade dos nossos dias, de cada um deles, e resolvi profanar o último da minha semana com o gozo da fé no agora. Deu certo. Pensei em don Miguel:

“Nossa filosofia, isto é, nosso modo de compreender ou de não compreender o mundo e a vida brota de nosso sentimento com respeito à própria vida (…)

Não são nossas idéias que costumam nos tornar otimistas ou pessimistas, mas sim nosso otimismo ou nosso pessimismo – de origem fisiológica ou talvez patológica, tanto um como o outro – que fazem nossas idéias.

O homem, dizem, é um animal racional. Não sei por que não se disse que é um animal afetivo ou sentimental. Talvez, o que o diferencie dos outros animais seja muito mais o sentimento do que a razão. Vi mais vezes um gato raciocinar do que rir ou chorar. Talvez chore ou ria por dentro, mas por dentro talvez também o caranguejo resolva equações de segundo grau”.

(Miguel de Unamuno, Do sentimento trágico da vida)

Eu, nascida animal sentimental, com as idéias doentiamente afetadas pelo meu otimismo, saí do jornal a uma da manhã, como tem que ser, e dormi feliz com a idéia de desvirginar o dia seguinte, que já havia começado.

quinta-feira, novembro 23, 2006

Santa Helô



Ando encantada com mulheres. Aproveito pra falar da Helô, com quem passei a tarde do último domingo. Comentei, certa hora, a respeito da minha sempre crescente vontade de recolhimento pra gestar meus sonhos, e gestar é uma boa palavra, porque gestar é verbo que deriva na certeza de nascimento, necessitando, pra se fazer carne, apenas de espera. E eu optei por uma espera silenciosa.

A Helô, que concorda comigo, me disse que três dos nossos sete chakras principais se localizam assim, mais ou menos, no peito, na garganta e na cabeça. A energia dos nossos sonhos teria lugar no peito e, para se transformar em concretudes, deveria ser canalizada pra cabeça. O problema é que, antes, nossos sonhos passam pela garganta, encontram a bifurcação da fala, e então, muitas das vezes, assim se dissipam.

Decidido: não cuspo mais meus sonhos.

terça-feira, novembro 21, 2006

Da estrela Clarice e a hora das minhas santas profanas

"Esse eu que é vós pois não agüento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter de pé, tão tonto que sou, eu enviesado, enfim que é que se há de fazer senão meditar para cair naquele vazio pleno que só se atinge com a meditação. Meditar não precisa de ter resultados: a meditação pode ter como fim apenas ela mesma. Eu medito sem palavras e sobre o nada. O que me atrapalha a vida é escrever. E - e não esquecer que a estrutura do átomo não é vista mas sabe-se dela. Sei de muita coisa que não vi. E vós também. Não se pode dar uma prova da existência do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar. Acreditar chorando."

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"Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho".

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Mais fragmentos de Clarice, dessa vez de A hora da estrela, que ainda não li todo. Recebi o livro por e-mail ontem, como presente virtual da Déia, que me escreveu:

"Estou assustada, no mais positivo sentido. Fiz download de Clarice naquele site e parece q estou lendo você. Lindo!
Beijos!"

Lindo que a Déia me veja assim. Muitas coisas eu sei de sentir antes de ler em quem sabiamente as escreveu. Não é assim sempre? Porque está dito. O espanto de identificação acontecera antes, com Miguel de Unamuno e Schopenhauer ultimamente, mas tantos outros antes. Tal sentimento não me pesa como vaidade, porque nasce de uma grande humildade. Quanto mais entendo que é tudo uma coisa só, mais muitas são as vozes que falam por minha mesma boca, ou falo por uso de outras bocas e vozes, porque minhas e outras dá no mesmo, inexistem iguais.

E que não me acusem de negar o colorido das diferenças, porque o nosso planeta, de tantas diferentes geometrias e formas de vida, cores e dores, no fim das contas é redondo e azul. E agora me lembro das feiras de ciências na escola, e de uma experiência: um disco de papel, ou papelão, pintado com duas ou três cores diferentes, colocado num suporte mecânico que o fizesse girar, resultava num disco de uma cor outra e única, revelada a partir da mistura, da velocidade. Daí nascem, da visita do homem à lua e da experiência dos tempos da meninice, nascem dois ensinamentos: algumas compreensões somente são possíveis com certas doses de distância e movimento.

domingo, novembro 19, 2006

Clarice, Clarice, Clarice

“por eu ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar o abismo de que sou feita”.

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“Pois o estado de graça existe permanentemente: nós estamos sempre salvos. Todo o mundo está em estado de graça. A pessoa só é fulminada pela doçura quando percebe que está em graça, sentir que se está em graça é que é o dom, e poucos se arriscam a conhecer isso em si. Mas não há perigo de perdição, agora eu sei: o estado de graça é inerente”.

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“Eu estava habituada somente a transcender. Esperança para mim era adiamento. Eu nunca havia deixado minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa porque é arriscado demais perder-se a forma. Mas vejo agora o que na verdade me acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia inventado apenas o futuro, eu acreditava tão pouco no que existe que adiava a atualidade para uma promessa e para um futuro”.

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"Mas ouve um instante: não estou falando do futuro, estou falando de uma atualidade permanete. E isto quer dizer que a esperança não existe porque ela não é mais um futuro adiado, é hoje. Porque o Deus não promete. Ele é muito maior que isso: Ele é, e nunca pára de ser. Somos nós que não agüentamos esta luz sempre atual, e então a prometemos para depois, somente para não senti-la hoje mesmo e já. O presente é a face hoje do Deus. O horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos Deus. É com os olhos abertos mesmo que vemos Deus. E se adio a face da realidade para depois de minha morte - é por astúcia, porque prefiro estar morta na hora de vê-Lo e assim penso que não O verei realmente, assim como só tenho coragem de verdadeiramente sonhar quando estou dormindo".

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"É medo. Pois prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas a me prometer vida. E este é o maior susto que eu posso ter. Antes eu esperava. Mas o Deus é hoje: seu reino já começou".

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"E eis que eu estava sabendo que a promessa divina de vida já está se cumprindo, e que sempre se cumpriu. Anteriormente, só de vez em quando, eu era lembrada, numa visão instantânea e logo afastada, de que a promessa não é somente para o futuro, é ontem e é permanentemente hoje: mas isso me era chocante. Eu preferia continuar pedindo, sem ter a coragem de já ter".

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"Eu não quero mais o movimento completado que na verdade nunca se completa, e nós é que por desejo completamos; não quero mais usufruir da facilidade de gostar de uma coisa só porque, estando ela aparentemente completada, não me assusta mais, e então é falsamente minha - eu, devoradora que era das belezas".

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"Entendi então que, de qualquer modo, viver é uma grande bondade para com os outros. Basta viver, e por si mesmo isto resulta na grande bondade. Quem vive totalmente está vivendo para os outros, quem vive a própria largueza está fazendo uma dádiva, mesmo que sua vida se passe dentro da incomunicabildiade de uma cela. Viver é dádiva tão grande que milhares de pessoas se beneficiam com cada vida vivida".

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"E solidão é não precisar. Não precisar deixa um homem muito só, todo só. Ah, precisar não isola a pessoa, a coisa precisa da coisa: basta ver o pinto andando para ver que seu destino será aquilo que a carência fizer dele, seu destino é juntar-se como gotas de mercúrio a outras gotas de mercúrio, mesmo que, como cada gota de mercúrio, ele tenha em si próprio uma existência toda completa e redonda".



(Fragmentos de Clarice, em A paixão segundo G.H.)

sexta-feira, novembro 17, 2006

Na chuva com Van Gogh

Inaugurando imagens metanóicas.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Marias, Claras e Clarices

Ele é um cara bacana... mais que isso, muito mais, digo bacana só porque me prometi que hoje não vou escrever muito. Então, ele, que é mais que bacana, que é supimpa (pra usar essa que é das favoritas entre minhas gírias idosas ), ele disse que um dia vou ser mãe de uma menina chamada Maria Clara, e eu, que nunca havia pensado num nome de mulher, gostei desse. Com o primeiro namoro, ainda adolescente, vieram planos de casamento, família, filhos, todos aqueles sonhos mais fáceis de desejar (qual é a diferença entre sonho e desejo, assim, no aspecto semântico da vontade de realizar?) na adolescência, quando a possibilidade de concretização não dá medo precisamente porque distante. Pois então, filhos. No singular, na verdade. Apenas um, e macho! Escolhia nomes, Mateus no topo da lista, depois João. Eu e minha mania de santos, de anjos, porque o João bem que podia ser também Gabriel. Engraçado que isso mudou faz pouco tempo... não a mania de santos, ou anjos, não isso propriamente, mas a mania de macho. Vai ver antes não queria uma menina porque eu achava muito difícil lidar comigo mesma, porque na adolescência era mais fácil sonhar, desejar, como queira, mas não era fácil conviver com a minha intensidade, a minha angústia, a minha impulsividade, a minha bunda maior que a de todas as meninas da minha idade, maior que a das mais velhas também. Agora que não sou mais adolescente, que acho mais fácil conviver com os meus dramas e nádegas, curto a idéia de substituir os sagrados santos e anjos por uma bundudinha desse mundo, profana, no sentido sociológico do termo. Maria Clara... Ou só Clara, porque meu pai, que sabe da vida de todos os santos, e santas, ele hoje veio me dizer que Clara de Assis era parceirona de Francisco, primeira seguidora dele, e eu gostei, achei o nome forte, e eu nunca havia reparado direito, ou parado pra escutar, e repetir, Clara, Clara, Clara. Lembrei que sempre quando tenho medo de alguma coisa não dar certo eu penso que preciso ter calma, porque a vida não é tão grave assim, e que se der tudo errado, considerando os conceitos que as pessoas têm do certo e do errado, que se tudo der em nada, considerando o pavor que as pessoas têm do nada, do vazio que se parar pra pensar é bacana porque dá pra preencher de várias formas e nadas, se tudo for um grande eterno impreenchível, e se impreenchível for realmente ruim, então eu me torno alguém menos desse mundo, menos profana, no sentido sociológico do termo, e viro irmã franciscana. Na verdade eu roubei essa idéia da Déia, assim, com rima feia e tudo, mas agora acho que a idéia é minha, idéia que eu relaciono com aquelas palavras da Clarice, a Lispector, Clarice, Clarice, Clarice, Clara, Clara, Clara... aquelas palavras, que “a desistência é uma revelação”, que “solidão é não precisar”. Recolhimento por não precisar, antes de tudo, ou de mais nada, não precisar de tudo, nem de nada.

domingo, novembro 12, 2006

Eu perdi o meu medo, meu medo da chuva

Naquela manhã em que, de mochila nas costas e adeus nas mãos, orientei meus passos rumo ao aeroporto de Schiphol, de onde partiria com destino a Guarulhos, os cinco graus centígrados no termômetro me pareceram uma mística despedida. Desde minha chegada à Europa, três meses antes, cada cidade visitada me recebera com sol: Londres, Amsterdã, Paris, Porto, Amsterdã outra vez, Bruxelas, Paris novamente, Londres ainda, Amsterdã por fim. Dias chuvosos eram véspera da minha chegada ensolarada. A gente aprende a acreditar em uns mistérios bobos pra deixar a vida mais bonita... e nessa, o mundo acaba ganhando cor de verdade.

Os últimos dias na preferida Amsterdã foram de temperatura que oscilava entre 11 e 15 graus. O outubro mais quente em trezentos anos, disseram os noticiários. A minha alma brasileira, tão acostumada com o Rio de Janeiro, não se abalou com os oito graus da véspera da partida e a linda chuva de pedacinhos de gelo (da qual nos protegemos, Dani e eu, no café de Nieuwmarkt). “Eu perdi o meu medo, o meu medo da chuva”... e aprendi a ver beleza nela.

Quem reclama dessa garoa de ultimamente, agora, aqui, no Rio de Janeiro, não desconfia do bem que ela me faz. Feito a passagem do livro da infância, do Pequeno Príncipe de tantos clichês: “Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...”.

A chuva rega as ainda frescas lembranças de caminhadas pelas cores de Zeedijk, de cervejas em entorpecentes esquinas, de buzinas de bicicletas misturadas com o Radiohead dos meus tímpanos, dos canais e suas flores, de pedaladas na beira dos diques, docas e campos de ovelhas e vacas.

Olho pra minha janela, o verde das árvores continua a ser banhado de recordações. Bem ali, se forma a imagem de um sorriso, de uma criança que brinca de bola no pátio molhado enquanto espera sua mãe. É uma imagem atemporal, de uma felicidade passada, presente, porvir. Por ela, vale à pena viver, vale chover.

quinta-feira, outubro 12, 2006

Da barba do profeta

Com tanta gente pra ter saudade, de vez em quando pipocam figuras inesperadas na lembrança. Hoje senti falta do Nehemias.

Nehemias, todo domingo de manhã, senta num dos últimos bancos daquela pequena igreja. Acho que ele faz isso pra ter certeza de que todos ouvirão seus comentários, ao mesmo tempo, acredito, pra desafiar, ver quem tem coragem de virar o pescoço e reprovar, ainda que com uma olhadela, suas provocações. Ele anda na casa dos 60 anos, é psiquiatra, criado em igreja protestante, reencarnacionista, discípulo de Yoganada e fã de Albert Einstein. Devo a ele, ao Edson também, minha maior tranqüilidade em relação à morte.

Tenho um jeito tão ingênuo de sentir o cristianismo que gosto de pedir colo ao pai que não vejo; acredito que um mistério assim, a morte, tão maior que minha meninice, só pode ser conhecido por Deus mesmo. Mas tenho um jeito tão cético de pensar o cristianismo que esqueço que deus existe - existe? deixa de existir! - que vivo tentando encontrar explicações para mistérios que, ainda!, não descobri.

Nehemias, quando quer expor suas teorias, sempre parte das palavras de Einstein, que resumiu o mundo e afirmou que tudo o que existe é energia; condensada ou dissipada, materializada ou livre. Fica fácil pensar a morte assim: quando eu morrer, me desmaterializo, minha energia se dissipa pra virar outra coisa qualquer e dar continuidade a esse mundo que, por acaso, funciona com a mesma água há bilhões (quem sabe de certeza?) de anos. "Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma" e blá, blá. Parando pra analisar, a lógica é muito humilde, e se é humilde também posso chamar de cristã. Muito cristão pensar que a gente é parte de algo muito maior. Importante parte, mas apenas uma parte.

Lembrei agora também da minha conversa com o Gui, no Louvre, dia desses. O cristianismo está lá pintado em quilômetros e séculos de quadros. Não sei que conflitos religiosos os autores cultivavam, se é que cultivavam, mas é certo que as histórias bíblicas serviram de inspiração para longos períodos. (Nota oportuna: já de volta a Amsterdam, ontem estive no Rijksmuseum pela terceira vez. Rembrandt era fissurado por temas cristãos, às vezes desenhava o mesmo de três diferentes maneiras, com intervalo de anos entre eles.) O Gui, que é ateu, concorda comigo quando eu digo que o intelectualismo aprendeu a negar tanto que acabou negando a beleza também. O Gui, que é ateu, diz que acredita no homem - e eu concordo que isso é mais difícil que acreditar em Deus.

Pois eu falava do Nehemias, que com as palavras de Einstein me fazia pensar nos budistas, para quem tudo é uma coisa só. Mas o "homem", ou sei lá quem, é individualista demais pra se saber pequeno, pra se saber beleza, pra se saber parte, pra se saber todo. E sem se saber, é muito mais difícil morrer. Jesus soube morrer.

Saudade do Nehemias...

segunda-feira, setembro 25, 2006

Cà com meus botões

Preciso não esquecer o que sei desde sempre: tudo é infinitamente mais fàcil, simples e natural do que minhas idéias sobre o que quer que seja.

quarta-feira, setembro 06, 2006

Uma canção e um brinde aos encontros de beleza

Já experimentei diversas vezes: quando meu coração se enche, eu vazo. Quando tudo o que vejo é beleza, ela toma conta de mim, me provoca santa transfiguração, e salta pelos meus poros e olhos. Então, sou bela. Em dias assim, sei de sentir que beleza está em toda parte, me cabe estender a mão e colher. Todo mundo tem botãozinho, em algum canto da alma, que aciona mundos e pessoas, faz espalhar encantos, e é por isso que o universo sempre acaba recebendo esses respingos dos poros alheios, de beleza suada, transpirada.

Em Londres eu já confirmara que qualquer pessoa, independente de suas raízes e cultura, é sensível à essa beleza universal que faz bolha na pele. Várias vezes me pararam na rua. Em uma manhã ensolarada, de caminhada no Hyde Park, depois de já haver matado a curiosidade de bem uns três transeuntes em relação à minha origem, dois portugueses vieram na minha direção e, quando nos cruzamos, disseram: “você é do Brasil, não é?”. Cinco minutos de conversa e na despedida um curioso comentário: “você tem uma boa aura”.

Ontem, e também no dia anterior, eu era bela. Novamente as pessoas na rua, aqui em Amsterdam, suas palavras e sorrisos pra mim, atestavam o meu estado de espírito. Percebi isso primeiro no tram, no meu caminho da Centraal Station para a Museumplein, e depois no Vondel Park, aonde fui com o intuito de esvaziar um pouco a alma - sentar, pensar e talvez escrever - depois que saí do Museu do Van Gogh com sensações díspares, absolutamente complementares, na verdade: atordoada e cheia de vida, eu diria. E impregnada daquelas cores.

Enquanto eu escrevia algumas linhas, tentando adivinhar o que pensaria o holandês na minha frente, atado à grama por uma moribunda nesga de sol, vi que as pessoas que passavam me olhavam com uma curiosidade simpática. As velhinhas me lançavam sorrisos e olhares singelos e, percebi protegida pelas lentes dos meus óculos escuros!, o holandês atado à grama talvez também tentasse adivinhar o que eu pensava e escrevia, porque suas espiadelas discretas se seguiram mesmo depois que a nesga de sol se fora. Era um homem bonito – o que não costumo ver por aqui, discorde quem queira – e quando se levantou para ir embora, já sem sombra de nesga de sol na grama, como as velhinhas ele também me sorriu, o que me deixou desconsertada, mais ainda porque depois olhei pra trás e ele continuava me observando, e riu de verdade por flagrar o meu olhar curioso - denunciado, apesar das lentes dos meus óculos escuros.

Minutos após e um homem pediu licença para sentar do meu lado, com sua lata de cerveja e seu cigarro feito, no banco que eu ocupava inteiro sem cerimônia, porque eu estava exatamente no meio, com as pernas cruzadas, de índio (que nostalgia me provoca essa expressão da minha infância...). Abri espaço, ele puxou assunto e então falamos por uns 30 minutos. Era um homem inteligente, com uma visão de mundo interessante e crítica. Cumprimentou diversas pessoas enquanto estive ali e afirmava que Amsterdam não passava de uma vila. Ninguém parecia se importar com seus dedos amarelados de fumo, os dentes escurecidos e não exatamente apresentáveis, o sobretudo desalinhado, calça jeans suja, sapatos gastos e os cabelos loiros compridos desgranhados e ensebados. Tampouco eu me importei. Respondi amigavelmente à sua primeira frase, não julguei que fosse um bêbado sujo, mas admito que sua aparência me despertou uma certa curiosidade. Um cidadão de um país rico, cujo governo oferece tudo, boa educação, saúde, trabalho, e parece que há tempos ele perdeu o interesse por escovar os dentes.

Depois de me despedir com a desculpa de que já estava tarde, ainda me demorei caminhando no parque que escurecia às oito da noite, feliz porque o ambiente agora me parecia tão familiar, ao mesmo tempo que surpresa por tal constatação. Nos últimos dias tenho deixado a bicicleta de lado e optado pelas caminhadas. Percebo melhor a cidade assim, compreendo melhor as direções, sentidos e distâncias, e eu precisava disso pra me sentir mais em casa.

Saí do parque já noite, segui em direção à Leidseplein e tinha a intenção de caminhar mais, até a Centraal Station, onde tomaria o ônibus para Amsterdam Norte. O movimento da Leidseplein na noite de terça-feira me atraiu para as ruas adjacentes, perambulei um pouco e, quando eu já estava decidida a continuar meu percurso, dois homens na porta de um restaurante espanhol, onde um cartaz anunciava música ao vivo, me perguntaram se eu era brasileira. O gordo careca de óculos com cara de bonachão, um uruguaio que vive em Amsterdam há 24 anos, era o artista, o cantor do bar espanhol. O outro, o garçom, mineiríssimo, ficou feliz de receber uma compatriota e me trouxe uma cerveja sem que eu pedisse. Os dois me convidaram para experimentar o camarãozinho frito especialidade da casa, preparado pelo jovem espanhol Josesito, e conversar um pouco, esperançosos, segundo me disseram, de que a presença brasileira alegraria o ambiente tedioso que estivera vazio, sem clientes o dia inteiro. Aprendizado da viagem à Israel: latinos costumam se alegrar com esses encontros em países de cultura tão diferente, percebem essa irmandade, tão óbvia e tão invisível quando estamos enclausurados em nossas “fronteiras fictícias”, para usar as palavras do comandante Che.

Minutos de conversa animada na parte de fora do restaurante, perto da rua; eu inicialmente vacilante com o meu espanhol adormecido, mas pouco depois já muito confortável com o meu amigo uruguaio, que estava à toa por ausência de platéia. Logo, com tantos turistas passando, e talvez nos olhando com aquela mesma curiosidade que eu observara no Vondel Park horas antes, o uruguaio começou a chamar os que passavam, e com isso os cativava, e o restaurante foi ficando mais cheio. Primeiro o grupo das Filipinas, depois o casal de ingleses, e então todas aquelas senhoras da Lituânia. O meu amigo uruguaio, Kiko, já revigorado, reassumiu seu posto de artista e, com o seu violão, fazia graça para o público, que não entendia suas palavras castellanas. Kiko improvisava canções, cantava como repentista, falava da nova amiga brasileira sentada no lado de fora. Agradava aos clientes, apesar do fato de que estes pediam canções que ele nunca sabia tocar.

Certa hora, ele anunciou minha presença em inglês e disse que a brasileira cantaria uma música. Não recuei: me aproximei e, para a surpresa de Kiko, ainda peguei o violão, muito nervosa, por tocar muito mal e não lembrar de nada de cabeça. "Certas histórias não podem ser perdidas", pensei. Josesito abriu um sorriso e me trouxe mais uma cerveja. Ele e o mineiro não deixaram meu copo vazio, era o sexto ou sétimo chope, de acordo com os meus cálculos entorpecidos. E então, pra completar, entraram duas paulistas no restaurante e se dispuseram a fazer coro comigo. Respirei fundo e disse à minha platéia que levaria a versão brasileira de “No woman, no cry”, do ilustríssimo ministro da cultura Gilberto Gil. E assim fiz... Meu amigo uruguaio se empolgou, um americano na porta reconheceu a melodia e se aproximou. No final, aplausos da platéia, restrita mas satisfeita, que pediu bis. O americano elogiou a minha voz e eu gargalhei por dentro. As duas paulistas pareciam não acreditar. Sim, compartilhamos um momento inusitado e inesquecível.

Hora de ir embora, pedi a conta, no que Kiko e Josesito rebateram: "Que conta, brasileña? Você foi nossa convidada. E ainda cantou!". Minha voz rouca e os dedos desajeitados nas cordas do violão me garantiram o petisco e muita cerveja de graça. Ainda mais essa...

Me despedi de Kiko, de Josesito e do mineiro, e aceitei o convite empolgado das meninas para acompanhá-las no bar que fica logo em frente, o Bourbon Street. Não me demorei, apesar da música boa, da bandinha bacana tocando rock. Um paulista, amigo delas, depois de ouvir os relatos da noite, lamentou por não ter presenciado o espetáculo de minutos antes e disse que eu tinha uma "energia boa, uma espontaneidade bonita e um brilho diferente nos olhos".

Esperando o ônibus na estação, repassei a noite feliz na minha cabeça, que terminou só depois de uma derradeira conversa: com o motorista do Suriname que me contou histórias sobre o seu país, falou da vida em Asmterdam, onde mora há 30 anos, e dos planos de voltar para a terra nos trópicos, vizinha tão desconhecida pra mim. Às quase três da manhã cheguei ao meu destino, ele me agradeceu pelo papo da madrugada e se despediu contando que saiu de casa com um sensação boa que agora se explicava: “eu sabia que ia te encontrar”.

Amém para todos os encontros que se dão nesse universo cheio de beleza.

segunda-feira, setembro 04, 2006

Aprendendo a embrulhar o presente

Tinha a intenção de relatar meus dias em detalhes; viver o hoje de cada minuto, processar sensações e depois passá-las adiante com o meu embrulho colorido de palavras (embalagem conta muito, dá personalidade ao que tem dentro). Desisti da idéia porque percebi que precisava encontrar a embalagem adequada para o produto resultante da matéria-prima que ainda processo mal. Meus dizeres-invólucro servem mais para o que está posto há certo tempo do que para o que acaba de me ser apresentado. Nenhuma novidade. Sempre admiti isso.

segunda-feira, agosto 07, 2006

First Impressions of London – primeira página do meu diário de bordo

Não perdi mais que cinco minutos na imigração. Chegar na Europa por Londres costuma ser sacal, dizem, mas o inglês bem falado, modéstia às favas, pesou a meu favor. Por conta do cancelamento do meu vôo pra Londres pela KLM, tive que fazer outro check in no aeroporto de Amsterdã. Como se já não bastasse a minha ponte aérea louca - não mais pela Varig como eu, otimista, até dias antes achei que seria. Assim: saída do Rio pelo Santos Dumont (que de nove às onze da manhã permaneceu fechado para pousos e decolagens por conta do mau tempo), chegada em São Paulo por Congonhas, traslado até Guarulhos e, finalmente, Amsterdã, onde, como eu disse, precisei esperar o vôo seguinte, que sairia uma hora depois do previsto.

A Déia me aguardava no Aeroporto de Heathrow. A gente se abraçou do mesmo jeito de sempre, como se os meses de distância não tivessem sido cinco e o tempo de viagem não fosse um oceano. Como se estivéssemos no Galeão de tantas vezes.

Já na estação do metrô, não vendo lixeiras por perto perguntei a um funcionário onde eu poderia encontrar uma. Ele tomou o papel da minha mão e disse que jogaria fora pra mim, pois ali não havia mesmo lixeiras. “Medo de bombas”, me explicou. Welcome to London…

Como eram apenas 5 da tarde, não dormi. Saí pra dar uma volta e, na primeira noite londrina, com direito a gig de grupo desconhecido com vocalista mulher, pensei que preciso começar as aulas de canto assim que retornar ao Brasil, pra concretizar a idéia de formar uma bandinha com o Lu e o Zé Guilherme. Vai ser divertido...

Na sexta-feira, o Dolpho passou pra me buscar. Demos uma volta em Brick Lane, que já se tornou o meu lugar favorito aqui. Concordo com a Déia: é a Lapa de Londres. Lá passei também a noite feliz de sábado, com conversa boa, muitos risos, pessoas bacanas e suor na pista de dança do Vibe Bar. Recomendo.

Amanhã é dia de um reencontro pra lá de esperado. Os meus três amigos ingleses, com quem compartilhei tanta história de meses em Israel e no Egito, chegam amanhã em Londres para se encontrar comigo (nenhum deles vive na cidade atualmente, apesar de um ser londrino). A última vez que nos vimos foi há seis anos atrás. Durante todo esse tempo pensamos em muitos lugares mundo afora para um possível reencontro. Londres, curiosamente, nunca esteve em nossos planos. Que vida mais cheia de surpresas...

terça-feira, julho 25, 2006

Almanacão da Gi*

Dispersão de público alvo

Véspera de feriado, quarta-feira com cara de sexta, decido sair com os amigos. Fico na dúvida em relação ao que vestir. Sabe quando mulher quer se sentir bonita? Pois então, ontem parecia ser meu dia. Experimento várias roupas, mas demoro até me dar por satisfeita. Na primeira tentativa, me sinto conservadora. Depois, ousada. Mulher fatal, Lolita. Muito casual, emperiquitada demais. Até que, enfim, me aprovo. Sóbria, de preto, um casaco de uma outra cor para quebrar um pouco. Blusa com decote sutil, bem feminina, nada vulgar. Dou um trato nas madeixas. Pouca maquiagem muito discreta. E pronto.

Saio e espero no local onde passariam para me buscar. Estou eu, maravilhosa, na rua, até que reconheço de longe o carro, que vem encostando, na minha direção. “Chegaram”, penso. Aí, resolvo bancar a engraçadinha: dou uma requebrada, coloco a mão direita na cintura, o dedo esquerdo na boca, faço biquinho e pisco os olhinhos. Sai de dentro do automóvel um cara que nunca vi mais gordo e me diz que me leva pra onde eu quiser. Minha alma se ausenta do meu corpo e volta a tempo de eu pedir desculpas por ter confundido os veículos absolutamente idênticos – e quantos outros não há?

Três minutos depois, entro no carro certo. A noite mal começou e eu já garantindo meu lugar de piada. Tudo bem, afinal, ainda me sinto ótima. Estacionamos, não muito perto, pela dificuldade de encontrar vagas. Começamos a andar, a chuva resolve voltar. Pras cucuias o capricho com os cabelos. Por fim, sentamos num bar e, como está abafado lá dentro, eu, já ligeiramente desgrenhada, tiro o casaco e penso que nem tudo está perdido: resta o meu decote.

Papo vai, papo vem, eu deixo o meu celular na mesa, porque espero uma ligação. Aliás, a ligação já está uma hora atrasada. Por fim, o telefone toca. Ufa! E eu achando que ia levar uma volta. Em cinco minutos ele chega, bêbado, sem a menor capacidade de distinguir o meu decote do avental do garçom. Em compensação, também não pode notar que estou descabelada, com a pouca maquiagem borrada e a calça manchada de molho madeira do filet mignon que devorei enquanto esperava por ele.

Na mesa ao lado, há um grupo de sete, a faixa etária média é de uns 45 anos, mas tem gente de seus 60. Avisto, depois, alguém em torno dos 30. Reparo que não param de me olhar. Será que isso se deve ao fato de eu estar desgrenhada e suja de molho madeira? Que nada. As mesas estão muito próximas, alguém segura no meu braço, sem que seja necessário levantar da cadeira, e me diz, olhando bem pro meu decote: “há, nessa mesa, três pessoas interessadas em você. Por que não nos dá seu telefone?”. Com uma olhada rápida, descubro de onde parte o interesse. Eu nem tinha reparado, mas há dois casais ali. Ou seja, o restante está me querendo.

Solto uma risadinha meio sem jeito, tentando ser simpática, mas não dou o número. Fico bastante impressionada com a ousadia. Perguntam meu nome, eu educadamente respondo, e me viro de novo para escutar o que o meu companheiro bêbado está dizendo, porque ele não pára mais de falar. Dali a três minutos, o pessoal da mesa ao lado me chama outra vez. Pedem licença ao cavalheiro embriagado que me acompanha e me entregam um papel, com quatro números de celular (pelo visto, um dos casais não é tão sério quanto imaginei) e quatro nomes: Sônia, Malu, Beth e Verônica. Junto, um convite para uma festa GLS num clube em Copacabana. Agradeço a gentileza e peço a conta.

O bêbado mora ali por perto, vai andando pra casa, e – que sorte! – eu nem preciso carregá-lo.

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*Repostagem de antigas histórias. "Dispersão de público alvo" foi originalmente publicado no Digerindo..., no dia 26 de maio de 2005.

sábado, julho 22, 2006

Para compartilhar

No meu lugar, como vocês se sentiriam se vissem o que vi no Lameblogadas?

quinta-feira, julho 20, 2006

Dos dribles que me dou

Antigamente eu era nação rubro-negra de verdade. Lembro que em 1995, ano de centenário, de Romário no mengão, de Renato Gaúcho tirando o nosso título com gol tricolor de barriga, nessa época eu chorava com derrota do meu time. Lembro da escola, da musiquinha que ficavam cantando pra mim: "Vaaaaaaai Flamengo / Sou tricolor e nunca vi gol do Romário / Vaaaaaaai Flamengo / Sou campeão no ano do seu centenário".

Era o mengão perder e todo mundo me sacanear, e sacanear também o professor de ciências, que, antes da partida do tal gol de barriga, apostou o cavanhaque com os alunos tricolores e apareceu numa segunda-feira de cara lisa.

Minha paixão da época, um menino que morava perto da minha casa, era tricolor doente, assim como os seus melhores amigos, e eu ficava duplamente inconsolável quando ele saía pra comemorar vitória em cima do Flamengo e passava na minha frente, no carro abarrotado de homem, buzinando, com aquela bandeirona enorme nas cores do time da minha família inteira - de parte de pai (a italianada toda é verde, vermelho e branco, claro) e de mãe.

Aliás, engraçado isto: todo mundo tricolor e eu criança já gostava de torcer pelo flamengo (ninguém ligava muito pra futebol, bem verdade). Lembro de 1992, eu, com dez pra onze anos, dando voltas no pátio do prédio com o meu irmão, também rubro negro sabe-se lá o motivo, gritando "pentacampeããão!!!".

Ainda em 1995, depois de tanto suspirar pelo menino tricolor, comecei a namorar um flamenguista meia-bomba e, com isso, passei assim, sem graça, esquecida do futebol, cinco anos com ele. Fui relembrar emoção de jogo aos quase 19 anos, em 2000, quando, no kibbutz, em Israel, assisti o Flamengo X Vasco da final do campeonato estadual, transmitido pelo canal árabe. Senti aperto no peito por estar tão longe, por não ter aproveitado o Maracanã enquanto eu podia, e me prometi que pisaria naquelas arquibancadas assim que regressasse ao Brasil. Mas que nada... só vi o mengão no fim de 2001, quando dois suecos que estavam hospedados na minha casa (eles tinham sido voluntários no mesmo kibbutz que eu) me imploraram pra assistir o primeiro jogo da final da Copa Mercosul e eu, com dois suecos mais três ingleses que surgiram de última hora, parti pro Maracanã, corri atrás de cambista pra conseguir ingresso por uma pequena fortuna e presenciei o chocho zero a zero do Flamengo X San Lorenzo.

Ontem, confesso, eu não tava nem aí pro jogo. Mas foi ligar a TV e me veio um monte de recordação bacana, pensei na minha promessa nunca cumprida de aproveitar o Maracanã e me lembrei da história daquele condenado à morte, narrada n’O Idiota pelo príncipe Míchkin:

… ele dizia que naquele momento não havia nada mais difícil para ele do que um pensamento contínuo: “E se eu não morrer! E se eu fizer a vida retornar – que eternidade! E tudo isso seria meu! E então eu transformaria cada minuto em todo um século, nada perderia, calcularia cada minuto para que nada perdesse gratuitamente!”. Ele dizia que esse pensamento acabou se transformando em tamanha raiva dentro dele que teve vontade de que o fuzilassem o mais rápido possível.
(…)
(―) ora, mudaram a sentença dele, logo, deram-lhe essa “vida infinita”. Então, o que depois ele fez dessa riqueza?
(…)
(―) perdeu muitos e muitos minutos...


O Maraca que me aguarde. E viva o Flamengo!

Que time é teu?

O amigo canadense me vê online no msn e começa a conversa, às dez da manhã, nove em Toronto, da seguinte maneira:

- you want Men to Go?

Eu solto um "what???????????" e ele esclarece de onde vem a pergunta:

- your MSN name is MeeeeeenGoooooo

A partir de hoje só grito MENGÃO. Just in case...

segunda-feira, julho 17, 2006

Humor nem tão negro assim

― Mãe, caiu outro pedaço de carne na minha sopa...
― Ai, que merda ter filho leproso!

Lembrei da lepra exagerada das piadas infanto-juvenis de outros tempos. A graça vem caricatura da mutilação e, aí, as imagens mentais que se criam acabam neutralizando o nefasto. Pensando bem, é divertido imaginar alguém que larga seus pedaços por aí. E, no fim das contas, é o que todos fazemos: largamos nossos pedaços por aí, pelo caminho.

É isso. Acho que a vida é uma constante mutilação ― e não há doença nisso! A lepra se dá quando a gente fica voltando pra buscar pedaço carcomido, em vez de virar esponja, feito o Bob Esponja, e se reconstituir.

Aliás, isto das esponjas marítimas me intriga: se sempre se reconstituem, elas morrem de quê afinal? De cansaço de viver se reconstituindo, deve ser...

quinta-feira, julho 06, 2006

Sobre ipês desbotados

Já cheguei a subestimar minha imaginação. Julgava-me, sim, dona de um olhar atento para o simples e que, por isso, a vida se arreganhava pra mim, e me contava belas estórias para que eu, então, as passasse adiante com o meu jeito próprio de narrar. Mas não é nada disso. Eu não sinto, prevejo ou compreendo o que quer que seja: invento tudo e materializo verdades com minhas palavras.

Hoje tenho dúvidas a respeito de muito do que vivi. Só o que há são essas palavras duvidosas a materializar inexistências. Com tamanha capacidade de colorir e florear, às vezes acho que vou descobrir um gigantesco nada por detrás das minhas imaginárias telas coloridas e das inventadas pétalas que deixo pelo caminho. Caminho esse que, bem capaz, talvez, igualmente, inexista.

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Certos estados de apatia germinam em belas terras, enquanto que chafurdados no mangue podre restam mil projetos e formas de vida. Falta de efervescência me dá azia; linearidade é algo que me apavora, muitas vezes.

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Por sorte sou mais de uma. Parte de mim só faz merda, enquanto a outra ri dos vexames. Diversão garantida. Poucos se sentiram tão completos, provavelmente.

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- aconteceu alguma coisa?

- minhas certezas me sufocam, só isso.

- ai, meu deus... pessoa enigmática!

- eu tenho vontade de chorar pelas minhas escolhas que julgo certas. não importa. questões existenciais.

- pra mim importa

- ando lendo mto simone de beauvoir...

- não gosto de saber que vc tá triste.

- não é bem triste. sufocada. s-u-f-o-c-a-d-a.

- que seja... qq coisa que te incomode.

- já passou.

- se precisar de qq coisa, por favor me ligue.... eu teria ido aí e te levado pra beber uma cerveja...

- sempre passa... aliás, não sei por que choro se sei que vai passar.

- a gente ficava falando um monte de besteira e vc nem ia pensar em nada!!

- se bem que costuma passar só depois que choro, então é válido chorar

- huahuahuahua

- taí, vou passar a chorar sempre, por precaução...

- surtou...

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Em tempo: fodam-se os jogadores de futebol.

terça-feira, julho 04, 2006

E o canário fez que nem holandês voador...

O dia amanheceu lindo naquele já distante primeiro domingo do inverno (tanta bola - rolada, parada e nas costas – desde então...). Manhã azul pra reforçar a fama do céu de junho e sol quente pra abençoar o Rio de Janeiro. Um dia, canarinho, você se encanta também. Por enquanto eu fico de cá te embalando com palavras...

Foi no domingo bonito feito assim que fiquei dividida. Já havia torcido contra os hermanos e bom que ganhei um empate diplomático. Mas, antes mesmo do começo de Portugal e Holanda, meu coração já doía. Dureza não apoiar o Felipão, ainda mais porque assisti o jogo na praia de Ipanema - aliás, temos fotos juntos lá, sabia? Falta agora eu te levar no Arpoador, onde as pessoas aplaudem o pôr-do-sol. Era lá que eu estava pouco antes do início da partida...

Precisei ser discreta pra ninguém perceber minha torcida, alaranjada feito o sol que se pusera havia pouco. Mas Felipão venceu, a despeito de minhas pragas pouco convincentes. Mal sabia eu que aquela seria uma vitória providencial, melhor dos consolos para as derrotas que se seguiriam. Não só a do Brasil – fique claro! - pois, creia-me, chorei com os hermanos.

Acho engraçado tudo agora. O tal do grito de doelpunt contra o Brasil deixou de acontecer não só devido a despedida da seleção holandesa. No fim das contas, nos disseram (ou nos dissemos?) au revoir. O curioso é que, enquanto nos entristecíamos por aqui, você aproveitava as férias na França.

Hum... Canarinho laranja, não me diga que você se transformou num galo!?!?

quarta-feira, junho 21, 2006

Ao canário laranja

A tua primeira visita ao Brasil da mamãe – e da tia que agora narra a história – durou apenas 30 dias. Aqui te conheci quando você contava três meses de vida. Amor logo de cara, apesar do teu berreiro no nosso encontro. Com toda razão, aliás: mais de dez horas para cruzar o Atlântico, conexão em São Paulo, chegada ao Rio, finalmente. Os outros passageiros cumprimentaram tua mãe depois da aterrissagem em solo tupiniquim. Elogiaram tua calma, teu silêncio, tua paciência madura na viagem gigante demais para um bebê. Sabendo disso, apoiei quando o choro veio, tardio e guerreiro.

Dia seguinte, conheci teu sorriso pra mim. Cheguei a me emocionar, viu? Mas depois descobri o vira-latinha que você era, de riso fácil, pra qualquer um, pra quem quisesse. Pequeno desse jeito e já entendendo tudo de democracia, já sabendo compartilhar o teu melhor.

Você não engatinhava ainda e o teu vovô dos trópicos, também misturado, nascido de ventre italiano fecundado por índio brasileiro, torcedor mais verde-amarelo que azzurro, já caprichava na lavagem cerebral. Era o tempo inteiro: “Gol! Gol! Basil! Basil!”. E num é que deu certo? Dia desses, mais de um ano depois, época de Copa do Mundo e briga pelo hexa, vi pela webcam: a gente fala “Gol! Gol! Basil! Basil!” e você levanta os bracinhos e cai na gargalhada. Teu pai, coitado, se esgoela no “Doelpunt! Doelpunt! Holland! Holland!” e você nem se mexe.

Hoje tem Holanda x Argentina. Deixa eu te contar duma vez: há uma rixa entre brasileiros e os hermanos argentinos. Tua tia aqui tem dessas coisas não, queria mais era ver essa América Latina unida, na luta pra estancar o sangue que jorra das veias abertas e compartilhando também vitórias nessas festanças que o mundo inteiro assiste. Mas, minha miniatura de conquistador, por você, hoje, eu sou laranja. De pintar o rosto e tudo, tirar foto e guardar pra posteridade. Pra assim tentar retribuir, agradecer de alguma forma pela felicidade de te ver virando a casaca com tanta empolgação.

Mas se tiver um Brasil x Holanda, meu amor, eu vou levantar os braços no mesmo instante que você, e assim estaremos juntos. Só espero que não silenciemos juntos após um indesejável grito de “doelpunt”...

sexta-feira, junho 16, 2006

Jornalista junguiana

Não sei o que Jung pensava a respeito de jornalismo, mas eu sei que fiz o teste e deu lá: jornalista. Que medo.

O que Jung diria de tantos outros coleguinhas?
Medo. Muito medo...

ENFP - "Journalist". Uncanny sense of the motivations of others. Life is an exciting drama. 8.1% of total population.

Da dura devoção

Sua santificação não se deu por motivo à toa. Fora os sofrimentos que suportou em vida e além dos seus amores de morte, desde sempre convivera com os avisos do céu. Desagradava-se. Com a missão de carregar o peso das cruzes e das contrariedades do coração até que deu pra acostumar. Mas saber de certeza das coisas antes delas serem acontecidos, e engolir verdade sem nem saborear um tantinho de ilusão, ah, isso era provação demais.

A santa se indignava: o mundo na precisa de tanta milagragem e o Divino teimava em esbanjar poder com profecia e comunicação (ainda mais depois que o coisa-ruim inventou a Internet. Mas isso é uma outra estória...).

Quando começava a se iludir, já estava certa da verdade. O negócio é que ela, de tão santa, desejava sofrer em paz; cultivando esperança miúda de entender mal os recados que o Todo-Poderoso dava pessoalmente em forma de beliscão na alma feminina desanimada.

A santa desconfiava de umas sabotagens do Superior. Não era possível que seus mais bobos afetos fossem, para Ele, reprováveis sempre! Ela até que tentava interceder pelos bondosos homens, mas Ele não perdoava: escapava nem santo, nem anjo! Chegava hora que ela cansava de ouvir Seus conselhos, então insistia, acreditava nas linhas certas dos errados, dava voto de confiança, cria em promessas. Milagrosos tombos... Fosse a santa de barro e quebraria duma vez; era acelerar o andor e acabava a história. Mas a santinha de borracha só caía feito João-Bobo, ia e voltava, assim, eternamente. Já nem distinguia santidades. Quando mesmo se deu a última vez que morrera? Tampouco se lembrava da mais recente vida. Perguntou pra Deus e Ele zangou: “é uma só!”.

Ela fez que não ligou. Sabia que era uma só, mas às vezes gostava de brincar de ser muitas, pra não lembrar que era a mesma e que o destino era um, desde sempre: carregar o peso das cruzes e das contrariedades do coração; levando também dores em seus ombros – doídos antes mesmo que houvesse pesar.

segunda-feira, junho 12, 2006

Segundo Ato: Da liberdade do corpo que dança

Repito, o começo tardio traz uma grande vantagem: maior percepção das mudanças. Como o cego de nascença que, enxergando, termina por ver mais que todo mundo, de tanto que pasma com a normalidade dos outros. Milagre do mesmo? Eu diria.

Eu me vejo diferente e não me refiro às alterações estéticas, mais sutis que as de alma; tampouco às gestuais, apesar da dança imprimir delicadezas. O que difere é a função do corpo.

Vasculhando meus parcos conhecimentos filosóficos, lembrei de Nietzsche, Foucalt e Deleuze e da forma dos três se referirem ao corpo como uma importante chave para compreensão tanto da opressão como da liberdade do indivíduo. Corpo da “grande saúde”, corpo adoecido pela sociedade, corpo da “digestão”, corpo que se atrofia para melhor caber no sistema produtivo, corpo alvo de medicalização, corpo subjugado por tortuosas concepções estéticas...

Peço perdão aos três pensadores por minhas sínteses e também generalizações, mas me arrisco a dizer que as duas funções do corpo mais facilmente identificáveis são a estética e a sexual. Pesa nas minhas ponderações o meu lugar de mulher – e brasileira! –, é inegável. Na minha filosofia de observação do cotidiano contam principalmente estes dois registros, estético e sexual, ambos aprisionadores. Corpo pra ser visto, apreciado se de acordo com os padrões estéticos, valendo o primado do supostamente belo, ainda que nem sempre saudável; corpo para ser provado com os olhos e consumido sexualmente.

Mas eis que se inaugura uma nova lógica, uma poesia diversa, um movimento que re-significa funções e olhares: nasce o corpo que dança. E se o meu corpo dança, a estética se vincula a trabalho, lapidação e conseqüência, não existe como fim em si. Já a sexualidade, agora, pode ganhar novos contornos, tempos e espaços outros – exclusivos e mágicos.

Ai, ai... eu confesso: ando meio pudica. Acho até que de tão desencanada. Não vejo problema em falar de sexo, talvez por isso não capriche nos despudores escritos, nem faça alardes que mais me soariam como clichês de uma rebeldia caduca. Adoro uma besteira bem dita, bem sacada, motivo de riso entre amigos, mas tem subversão sexual e certas exaltações que me cansam (eu tava falando dia desses: às vezes, numa de subverter, nos submetemos ainda mais a certas lógicas. Periga reforçarmos, pela via oposta, conservadorismos que pretendemos demolir).

Inexistem, no que se refere à sexualidade, questões morais ou religiosas que me atormentem, com isso a excitação do proibitivo passa ao largo; tive fantasias e realizei muitas - até que elas perderam a importância frente à realidades muito mais felizes.

História de tempos idos que me vem: o “último absoluto” potencializava o meu encantamento com as reconfigurações corporais do pós-dança. Com ele experimentei um sexo mais balé, mais poético, mais anímico. Por isso o comparei a uma caixa-depósito dos meus sentires acumulados mais refinados. Por isso também disse, certa vez, que gostava de mim com ele, talvez mais que dele propriamente. Narcisistamente... Quando juntos, eu constatei as novas formas, funções e movimentos do meu corpo que, agora, e antes de mais nada, dançava. (Aliás, acabei de me dar conta: mu-dança. Realidade que baila...).

Pudica. Ou talvez não. Vai ver apenas me surgiu uma nova percepção acerca dos lugares e espaços destinados ao espetáculo. Questão é: o suposto recato vem de liberdade e não de repressão. O corpo que dança é livre de forma tal que não se prende à exigências e padrões estéticos despropositados. Tampouco existe apenas para o sexo, assim criando novos paradigmas para a existência do mesmo.

Pra finalizar a prosa em baile, cito as conhecidas palavras de Santo Agostinho: “Ó homem, aprenda a dançar! Senão os anjos no céu não saberão o que fazer contigo!"

domingo, junho 04, 2006

Primeiro Ato: Infantilidade madura do corpo adulto verde

Terça-feira passada, momento mágico: minha primeira apresentação. Minutos antes, coração acelerado, medo de errar, pavor dos tantos olhares ao redor. Mas depois que a luz cai e se inicia a música, o mundo some, como definiu a Si. Resta você, seu corpo e a dança.

Comecei as aulas de jazz e balé moderno aos 22, há dois anos atrás, sem qualquer histórico de envolvimento com dança na infância ou na adolescência. Na época, primeira constatação: aos vinte e poucos anos se é jovem pra quase tudo. Quase, mas não tudo.

Se entrei numa turma de adultos iniciantes? Não mesmo. As meninas contavam cinco, dez, quinze, até vinte anos de dança. Só a Quel se iniciara havia apenas dois e, não por acaso, foi quem mais me incentivou a não desistir nos seis primeiros meses – prova de fogo, segundo ela.

Primeiro, o desconhecimento: quem é aquela desajeitada no espelho? Linguagem outra... En dedans e en dehors. E também demi-pliés e grand pliés. E ainda rond de jambes, à terre e en l’air. Mais: battements, tendus, jetés, développés, fondus. Attitude, croisé, arabesque, piqué, pirouette, chassé, fouetté. Pas de chat e pas de deux. Changements... Muitas, muitas mudanças.

Início de corpo que não responde, mesmo que a cabeça entenda. Aos poucos, você vai se descobrindo, partes desde sempre adormecidas despertam, reagem, se sentem vivas, depois mais fortes e, logo, abusado, o corpo pede: quero dançar! Pronto? Que nada. Porque aí, nessas primeiras respostas do corpo, tornei-me apta a perceber uma infinidade de outros desconhecimentos. Agora, pelo menos, há a mínima capacidade de notar melhor aquilo que não sei.

Por que não desisti? Ora, percebi a tempo que não é sempre que se tem oportunidade dessa de ser criança e achei por bem vivê-la. Na verdade, eu não era velha demais pra começar a dançar. Eu era é criança demais. Numa turma de crianças, são todas igualmente crianças. Ali, no espaço amadurecido, a infância naqueles movimentos era exclusividade minha. Talvez por isso as outras meninas me adotaram, e me incentivaram, e me socorreram. Método Paulo Freire de dança, assim apelidei...

Tratei de aproveitar a sensação de tornar a engatinhar – com a vantagem da consciência pra perceber os progressos e me encantar com cada um deles. O saber, não importa de que natureza, costuma despertar um fascínio guloso: queremos degustá-lo, sorvê-lo, devorá-lo. Mas criança ainda banguela mais olha, brinca e ri. E não se assusta com mistério - mais se maravilha e o respeita. Quando sabemos tanto, e devoramos tudo, às vezes perdemos a potência e o impulso do pasmar...

Outras experiências: presente bem vivido! Com fazer, tentativa e muito erro. Descouberam lamentos pelo passado de infância e adolescência sem balé; inoportunos todos os pensamentos e as dúvidas acerca de palcos futuros. Como eu disse uma vez, a maior parte do caminho é sempre feita de trajeto. Há mais ir que chegar. E, assim, apenas fui, apenas vou...

sexta-feira, junho 02, 2006

Seu Jacy

"Como sempre digo, depois da tempestade vem a ambulância". - por Seu Jacy, o pedreiro genial que está trabalhando na minha casa.

Certos níveis de compreensão eu nunca vou atingir. Só nascendo de novo...

domingo, maio 21, 2006

If

by Rudyard Kipling

If you can keep your head when all about you
Are losing theirs and blaming it on you;
If you can trust yourself when all men doubt you,
But make allowance for their doubting too;
If you can wait and not be tired by waiting,
Or, being lied about, don't deal in lies,
Or, being hated, don't give way to hating,
And yet don't look too good, nor talk too wise;

If you can dream - and not make dreams your master;
If you can think - and not make thoughts your aim;
If you can meet with triumph and disaster
And treat those two imposters just the same;
If you can bear to hear the truth you've spoken
Twisted by knaves to make a trap for fools,
Or watch the things you gave your life to broken,
And stoop and build 'em up with wornout tools;

If you can make one heap of all your winnings
And risk it on one turn of pitch-and-toss,
And lose, and start again at your beginnings
And never breath a word about your loss;
If you can force your heart and nerve and sinew
To serve your turn long after they are gone,
And so hold on when there is nothing in you
Except the Will which says to them: "Hold on";

If you can talk with crowds and keep your virtue,
Or walk with kings - nor lose the common touch;
If neither foes nor loving friends can hurt you;
If all men count with you, but none too much;
If you can fill the unforgiving minute
With sixty seconds' worth of distance run -
Yours is the Earth and everything that's in it,
And - which is more - you'll be a Man my son!

segunda-feira, maio 15, 2006

Novos ditos de antigas andanças e paragens

Em 2000, boa parte dos israelenses com quem conversei despretensiosamente demonstrava certo respeito por Yasser Arafat; nunca afeto, é verdade. No governo do então primeiro-ministro Ehud Barak, havia um processo de paz, capenga mas relativamente amarrado, e só me lembro de um episódio mais esquisito, justamente quando, em Tel Aviv, resolvi conhecer o memorial de Itzhak Rabin – aquele que apertou a mão do Arafat em 1993, nos Estados Unidos, e foi assassinado, dois anos depois, por um extremista judeu que não queria que Rabin saísse por aí cumprimentando todo mundo.

Minha visita ao memorial se deu em um sábado, o Shabat, e ali, guardando o lugar, havia um judeu, com um quipá na cabeça, lata de coca-cola na mão e palavras hebraicas incompreensíveis berradas pela boca que não se calou, mesmo depois d’eu dizer que não entendia a língua, porque, então, os gritos se pronunciaram em alto e bom inglês. Ele devia ter seus vinte e poucos anos, jovem como aquele menino de 1995 tão contrário a apertos de mão.

Mas não passou disso. Ele só queria berrar com coca-cola seu descontentamento com a homenagem prestada pelos visitantes que não tinham um quipá na cabeça e descompreendiam suas palavras hebraicas.

Na época, todos os judeus israelenses com quem eu conversava despretensiosamente me corrigiam quando eu dizia que a capital de Israel era Tel Aviv. De acordo com minhas aulas de geopolítica, a “comunidade internacional” jamais reconheceu Jerusalém como capital de Israel, e o meu contato com aquelas pessoas me ensinou que a comunidade internacional tampouco convenceu os judeus israelenses de que não era.

Pena eu não ter conversado tanto com árabe-muçulmanos israelenses. Na primeira vez que estive em Jerusalém, a minha entrada na cidade antiga foi pelo portão de Damasco, no quarteirão árabe. Até hoje sou capaz de sentir o aroma dos temperos em tantas bancadas das vielas estreitas, a música em palavras árabes que eu descompreendia, os véus à venda, e as mulheres e seus véus.

Experimentei muitos momentos de solidão, já no Brasil, porque entre as pessoas mais queridas não havia quem conhecesse a perenidade das marcas deixadas por tantos cheiros, cantos, cores e descompreensões...

sábado, maio 13, 2006

Lei Virtuáurea

Me senti prisioneira deste espaço virtual. Preciso de novos ares. Hoje, rompo os grilhões binários de sempre, pra, pelo menos, me repetir em outro lugar.

A digestora morreu. O digerindo fica pra contar histórias. Nasce a metanóica. Sem traumas, sem paranóia.

Lei Virtuáurea

Me senti prisioneira deste espaço virtual. Preciso de novos ares. Hoje, rompo os grilhões binários de sempre, pra, pelo menos, me repetir em outro lugar.

A digestora morreu. O digerindo fica pra contar histórias. Nasce a metanóica. Sem traumas, sem paranóia.

E disse Jesus, mas até parecia que ele falava grego

Já ouvi e li de vários teólogos, mas não custa repetir: as palavras conversão e arrependimento, usadas pelo Jesus que nos chegou em português, vêm de uma mesma expressão no grego: metánoia, que quer dizer algo como uma reformulação constante de pensamento. (Que ninguém me pergunte se Jesus falava grego, por favor).

O mestre tentou sugerir que víssemos o "mundo" não apenas com outros olhos - porque substituir olho por olho pode significar abrir mão de uma cristalização em prol de outra - mas com olhos sempre diferentes. Olhos abertos para o pasmar com a vida, que se movimenta, isso eu diria. No entanto, fechamos os ouvidos para certos válidos ensinamentos. E, claro, também os olhos.

sexta-feira, maio 05, 2006

Cerveja, sete e Sol

A Bela é virginiana, como eu, e tem interesse por astrologia. Na conversa de bar de noite dessas, ela comentou que vez e outra faz mapa astral dos amigos. Ali, na mesa lapiana mesmo, arriscou alguns palpites sobre mim. “Ascendente em aquário, sol na sétima casa. Significa que você se encontra através do outro”.

Cheguei em casa e mandei e-mail informando data, local e hora do meu nascimento, pra Bela tentar o meu mapa. Sem projeções, porque aí não curto. Não por medo ou superstição. Mais mesmo porque não tenho curiosidades a respeito do meu futuro. Aliás, tenho pensado ultimamente que o futuro de qualquer pessoa, enquanto lugar do já realizado, só pode ser enfadonho. Bom é o presente – tempo de travessia! Fora que, concordem ou não, de onde estamos, sempre dá pra ver a margem do futuro. Da margem, a linha do horizonte é muito mais que linha reta. Navegue-se quem puder, sem querer se salvar tanto...

Mas eu falava de Outro. Taí confirmação intrigante: nesse sol na sétima casa sempre acreditei, sem saber que era por causa do sol, do sete, do aquário. Do peixes que entrou provocando qualquer coisa que já não lembro mais o que seja, mas pode ser que eu simplesmente saiba, com nome outro, ou simplesmente sinta, de modo outro. Mas sempre Outro...

Cerveja, sete e Sol

A Bela é virginiana, como eu, e tem interesse por astrologia. Na conversa de bar de noite dessas, ela comentou que vez e outra faz mapa astral dos amigos. Ali, na mesa lapiana mesmo, arriscou alguns palpites sobre mim. “Ascendente em aquário, sol na sétima casa. Significa que você se encontra através do outro”.

Cheguei em casa e mandei e-mail informando data, local e hora do meu nascimento, pra Bela tentar o meu mapa. Sem projeções, porque aí não curto. Não por medo ou superstição. Mais mesmo porque não tenho curiosidades a respeito do meu futuro. Aliás, tenho pensado ultimamente que o futuro de qualquer pessoa, enquanto lugar do já realizado, só pode ser enfadonho. Bom é o presente – tempo de travessia! Fora que, concordem ou não, de onde estamos, sempre dá pra ver a margem do futuro. Da margem, a linha do horizonte é muito mais que linha reta. Navegue-se quem puder, sem querer se salvar tanto...

Mas eu falava de Outro. Taí confirmação intrigante: nesse sol na sétima casa sempre acreditei, sem saber que era por causa do sol, do sete, do aquário. Do peixes que entrou provocando qualquer coisa que já não lembro mais o que seja, mas pode ser que eu simplesmente saiba, com nome outro, ou simplesmente sinta, de modo outro. Mas sempre Outro...

quarta-feira, março 08, 2006

Mal adaptada

Drummond escreveu:

“Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida...”


Chico Buarque se identificou:

"Quando nasci, veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim.."


E eu me desesperei:

Quando nasci, um anjo sarado
Cafajeste e sarcástico
Mascarado feito Arlequim
Em vez de falar, mandou recado:
Vai, Gisele! ser derrota até o fim

Pior: eu, errada
Nascida tão tarde
Cheguei atrasada na vida
Fiz prova pra vaga de canhoto
E nem assim fui escolhida

Mal adaptada

Drummond escreveu:

“Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida...”


Chico Buarque se identificou:

"Quando nasci, veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim.."


E eu me desesperei:

Quando nasci, um anjo sarado
Cafajeste e sarcástico
Mascarado feito Arlequim
Em vez de falar, mandou recado:
Vai, Gisele! ser derrota até o fim

Pior: eu, errada
Nascida tão tarde
Cheguei atrasada na vida
Fiz prova pra vaga de canhoto
E nem assim fui escolhida

domingo, janeiro 22, 2006

Eu, por mim mesma - Tomo sétimo (e último)

"De todos os santos"

Eis que, então, lhe sobreveio a mensagem divina e ela compreendeu que deveria canonizar suas mágoas e transformá-las em milagres. Foi quando pensou nos homens de sua vida e constatou que eram todos santos. Conforme lhe segredara Deus em sonho, a eles devia sua miraculosa alquimia de transmutar lágrima em caminho.

Num papel, improviso de tábua da lei e de salvação, antecipadamente envelhecido por conhecer o peso de suas cruzes, ela compôs uma oração de graças às atuais, antigas e futuras gerações de seus homens santos.

Começou pelos que, devagar em verdes andores, simbolizavam o riso em sua vida: Santo Antonio – semente plantada e cultivada no seio da esperança por um mundo melhor – e São Lucas Mateus das terras calvinistas, doçura esculpida gente. A ambos ela devotara sua máxima ternura.

Em seguida, lembrou-se daqueles piedosos que sempre acudiam-na em momentos de elevadas aflições, bastando que, para isso, apenas fechasse os olhos; sem necessidade de juntar as mãos em reza ou fazer promessas de amor que ela jamais cumpriria. Então, entoou cânticos ao mais belo dos santos: salve São Marcos da Cachoeira, que a instruiu nos maravilhosos pecados da luxúria.

Assim, por igual motivo de prece atendida, ela também deu vivas a São João dos caroços rebeldes e brotos impossíveis, que fez germinar em seu coração mais esperança no porvir. Santo palavreiro que, com belos escritos e saudáveis vexames, reafirmou a missão de amá-la – incondicional, energética e libertariamente.

Das terras latinas de fé revolucionária, vieram-lhe duas imagens. A San Carlos de Puebla dedicou uma prece, pela crença cega que o distante santo nela depositara e pelos pergaminhos de profecia asteca que dele recebera. Por fim, ela derramou lágrimas bentas, emocionada com as providências de seu santo protetor: San Andrés de Medelín.

Escrevia a lista de seus santos homens santos e, pouco a pouco, deixava de ser a mulher de tormentosos prantos e metamorfoseava-se em virgem de luz, purificada após o flagelo. O amor, enfim, já não a castigava.

Sua última provação se deu no instante em que por ser escrito apenas um nome restava: o daquele que lhe impusera doídas penitências. Se ela sentia-se capaz de escrevê-lo? Duvidou com palavras. No entanto, como se de nada mais valessem, porque já desnecessárias, prevaleceu o impulso de seu misericordioso coração, que fez brotar magicamente no papel, em meio às luzes, com letras douradas, o nome que a havia feito cair endemoniada. Assim reescrito, significou alvíssaras. Boas novas do pequeno Santo Padre de Cuba, infalível em grandes milagres de contrariedade.

Teve pouco tempo para contemplar aquelas letras douradas. Ela já não pertencia a este mundo: virou Santa. Santa de Todos os Santos. Que foi crucificada, morta e esquartejada. Desceu ao barraco dos mortos. E ressuscitou ao sétimo tomo, depois de uma eternidade.

Eu, por mim mesma - Tomo sétimo (e último)

"De todos os santos"

Eis que, então, lhe sobreveio a mensagem divina e ela compreendeu que deveria canonizar suas mágoas e transformá-las em milagres. Foi quando pensou nos homens de sua vida e constatou que eram todos santos. Conforme lhe segredara Deus em sonho, a eles devia sua miraculosa alquimia de transmutar lágrima em caminho.

Num papel, improviso de tábua da lei e de salvação, antecipadamente envelhecido por conhecer o peso de suas cruzes, ela compôs uma oração de graças às atuais, antigas e futuras gerações de seus homens santos.

Começou pelos que, devagar em verdes andores, simbolizavam o riso em sua vida: Santo Antonio – semente plantada e cultivada no seio da esperança por um mundo melhor – e São Lucas Mateus das terras calvinistas, doçura esculpida gente. A ambos ela devotara sua máxima ternura.

Em seguida, lembrou-se daqueles piedosos que sempre acudiam-na em momentos de elevadas aflições, bastando que, para isso, apenas fechasse os olhos; sem necessidade de juntar as mãos em reza ou fazer promessas de amor que ela jamais cumpriria. Então, entoou cânticos ao mais belo dos santos: salve São Marcos da Cachoeira, que a instruiu nos maravilhosos pecados da luxúria.

Assim, por igual motivo de prece atendida, ela também deu vivas a São João dos caroços rebeldes e brotos impossíveis, que fez germinar em seu coração mais esperança no porvir. Santo palavreiro que, com belos escritos e saudáveis vexames, reafirmou a missão de amá-la – incondicional, energética e libertariamente.

Das terras latinas de fé revolucionária, vieram-lhe duas imagens. A San Carlos de Puebla dedicou uma prece, pela crença cega que o distante santo nela depositara e pelos pergaminhos de profecia asteca que dele recebera. Por fim, ela derramou lágrimas bentas, emocionada com as providências de seu santo protetor: San Andrés de Medelín.

Escrevia a lista de seus santos homens santos e, pouco a pouco, deixava de ser a mulher de tormentosos prantos e metamorfoseava-se em virgem de luz, purificada após o flagelo. O amor, enfim, já não a castigava.

Sua última provação se deu no instante em que por ser escrito apenas um nome restava: o daquele que lhe impusera doídas penitências. Se ela sentia-se capaz de escrevê-lo? Duvidou com palavras. No entanto, como se de nada mais valessem, porque já desnecessárias, prevaleceu o impulso de seu misericordioso coração, que fez brotar magicamente no papel, em meio às luzes, com letras douradas, o nome que a havia feito cair endemoniada. Assim reescrito, significou alvíssaras. Boas novas do pequeno Santo Padre de Cuba, infalível em grandes milagres de contrariedade.

Teve pouco tempo para contemplar aquelas letras douradas. Ela já não pertencia a este mundo: virou Santa. Santa de Todos os Santos. Que foi crucificada, morta e esquartejada. Desceu ao barraco dos mortos. E ressuscitou ao sétimo tomo, depois de uma eternidade.

terça-feira, janeiro 10, 2006

Eu, por mim mesma - Tomo sexto

"Portariando na conversaria"

Uma hora e meia de conversa, depois de quase dois anos. Cheguei ainda atormentada naquele prédio, daquele bairro onde tudo acontece em poucas quadras, mas logo me sobreveio um interlúdio de luz. Eu senti uma paz de morto. Não, não me refiro a um sentimento pesado, fúnebre. É que, pela primeira vez, pensei como velho. Aliás, com tanta juventude, nunca havia me preocupado com o fato de que velhos e jovens pensam diferente demais, simplesmente porque, em essência, é assim que deve ser. Não apenas porque as épocas passam deixando pra trás gostos antigos que, aos poucos, dão lugar às tantas modernidades que também envelhecerão. É que muda o jeito de sonhar.

Como jovem, já sonhei com ter amores, ter vida linda a dois, ter filhos, ter construção constante de mais vida, de mais que a dois. Pulsante, sorridente, problemática, florida, complicada, mas, acima de tudo, vida. Ter. E ali, de repente, me vi apenas feliz. Por tudo o que eu construí um dia. Não mais ansiosa por ter, mas grata pelo tido. Coisa de velho que vai morrer. Que sabe que o tempo de sonhar já anda curto, e por isso mais agradece. Missão cumprida.

Naquela hora e meia, tudo fez sentido. Eu, que nunca entendi por que a gente ama tanto pra acabar, compreendi finalmente que algumas reações de amor, desencadeadas, explodem no infinito, pra salpicar o universo. Ejaculação de um aparente caos que engravida o cosmo e gera beleza. Porque “a beleza salvará o mundo”.

Amor que fecunda a alma, ramifica e vai longe. Esse, pensava, foi pra longe de mim. Doeu um dia. Mas, naquela noite de Natal, com minha cabeça de velho que vai morrer, aliviada constatei que meu amor foi dar em outros lugares e saiu amando por aí.

Ao “autor da frase” dediquei as maiores merdas dos últimos dois anos, porque as fiz com o intuito (agora sei) de experimentar um eu diferente, pra me livrar daquele eu que o amara. Como vivi... Dediquei a ele os maiores porres e o primeiro baseado. O primeiro orgasmo sem amor. A primeira lágrima pela falta de amor, apesar do orgasmo. Dediquei-lhe tantos dos meus escritos (muitos aqui jazem arquivados). E tanto mais... Dediquei-lhe, por fim, o momento em que me enchi de querer provar que eu podia ser diferente, porque afinal eu já não era mais quem fora. Surpresa constatar que hoje sou tão ele. Ele é tão eu. Nós nos confundimos. Entranhou, apesar de passado. Mal-passado? Bem-passado. Agora passado a limpo. Porque tempo reescreve, a gente relê. Fica feliz quem quer, quem sabe como. Porque, sempre digo, mesmo os maus momentos rendem boas histórias.

Durante aquela conversa de portaria, fez muito sentido amar. Não para se ter algo, mas para engravidar o mundo de beleza. Eu senti muito orgulho porque um dia dediquei tanto amor a um cara tão bacana. Simples assim.

Mas por que, afinal, a ligação para o “autor da frase”, quando dei de cara com o “último absoluto” acompanhado na noite de Natal?

As minhas duas histórias de amores contrariados se entrecruzaram aqui e, por isso, logo me veio uma idéia: escrever seis dos sete tomos previstos, ligar para o “autor da frase”, marcar um encontro e mostrar-lhe os escritos. O sétimo tomo, então, versaria sobre esse imaginado reencontro, as impressões do “autor da frase” e a nossa conversa nesse dia presumivelmente inusitado. Mas a vida tratou de fazer graça com minha miudeza e foi bem mais criativa que eu...

Agora sim entendo o texto profético de Guimarães Rosa, que jamais antes me parecera tão pleno de sentido: "A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação - porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada..."

Depois da noite de Natal, ainda veio o Réveillon. Festa no meio da multidão, música, banho de mar com roupa e tudo. Iemanjá abençoou. Eu agradeci porque ainda vivi pra vê-lo mais feliz, mais bonito, mais bêbado e mais dançante que nunca. Eu, tão jovem, dancei – mais feliz, mais bonita, mais bêbada, mais muito que meu antes com ele. Eu, tão velha moribunda, pensei que, hoje, talvez tivesse medo de estragar esse ele tão melhor que aquele nós.

Daqui a dois dias, faz dois anos que tudo terminou. Daqui a dois dias mais dois, ele completa dois anos mais do que tinha quando tudo terminou. Natal, Réveillon, aniversário de fim, anos de vida. Muitos motivos para homenagens e recomeços. Se amigos? Não digo “apenas” porque é muito. Porque é muito bonito. Porque, pela primeira vez, penso que tenho um motivo para morrer em paz.

Eu, por mim mesma - Tomo sexto

"Portariando na conversaria"

Uma hora e meia de conversa, depois de quase dois anos. Cheguei ainda atormentada naquele prédio, daquele bairro onde tudo acontece em poucas quadras, mas logo me sobreveio um interlúdio de luz. Eu senti uma paz de morto. Não, não me refiro a um sentimento pesado, fúnebre. É que, pela primeira vez, pensei como velho. Aliás, com tanta juventude, nunca havia me preocupado com o fato de que velhos e jovens pensam diferente demais, simplesmente porque, em essência, é assim que deve ser. Não apenas porque as épocas passam deixando pra trás gostos antigos que, aos poucos, dão lugar às tantas modernidades que também envelhecerão. É que muda o jeito de sonhar.

Como jovem, já sonhei com ter amores, ter vida linda a dois, ter filhos, ter construção constante de mais vida, de mais que a dois. Pulsante, sorridente, problemática, florida, complicada, mas, acima de tudo, vida. Ter. E ali, de repente, me vi apenas feliz. Por tudo o que eu construí um dia. Não mais ansiosa por ter, mas grata pelo tido. Coisa de velho que vai morrer. Que sabe que o tempo de sonhar já anda curto, e por isso mais agradece. Missão cumprida.

Naquela hora e meia, tudo fez sentido. Eu, que nunca entendi por que a gente ama tanto pra acabar, compreendi finalmente que algumas reações de amor, desencadeadas, explodem no infinito, pra salpicar o universo. Ejaculação de um aparente caos que engravida o cosmo e gera beleza. Porque “a beleza salvará o mundo”.

Amor que fecunda a alma, ramifica e vai longe. Esse, pensava, foi pra longe de mim. Doeu um dia. Mas, naquela noite de Natal, com minha cabeça de velho que vai morrer, aliviada constatei que meu amor foi dar em outros lugares e saiu amando por aí.

Ao “autor da frase” dediquei as maiores merdas dos últimos dois anos, porque as fiz com o intuito (agora sei) de experimentar um eu diferente, pra me livrar daquele eu que o amara. Como vivi... Dediquei a ele os maiores porres e o primeiro baseado. O primeiro orgasmo sem amor. A primeira lágrima pela falta de amor, apesar do orgasmo. Dediquei-lhe tantos dos meus escritos (muitos aqui jazem arquivados). E tanto mais... Dediquei-lhe, por fim, o momento em que me enchi de querer provar que eu podia ser diferente, porque afinal eu já não era mais quem fora. Surpresa constatar que hoje sou tão ele. Ele é tão eu. Nós nos confundimos. Entranhou, apesar de passado. Mal-passado? Bem-passado. Agora passado a limpo. Porque tempo reescreve, a gente relê. Fica feliz quem quer, quem sabe como. Porque, sempre digo, mesmo os maus momentos rendem boas histórias.

Durante aquela conversa de portaria, fez muito sentido amar. Não para se ter algo, mas para engravidar o mundo de beleza. Eu senti muito orgulho porque um dia dediquei tanto amor a um cara tão bacana. Simples assim.

Mas por que, afinal, a ligação para o “autor da frase”, quando dei de cara com o “último absoluto” acompanhado na noite de Natal?

As minhas duas histórias de amores contrariados se entrecruzaram aqui e, por isso, logo me veio uma idéia: escrever seis dos sete tomos previstos, ligar para o “autor da frase”, marcar um encontro e mostrar-lhe os escritos. O sétimo tomo, então, versaria sobre esse imaginado reencontro, as impressões do “autor da frase” e a nossa conversa nesse dia presumivelmente inusitado. Mas a vida tratou de fazer graça com minha miudeza e foi bem mais criativa que eu...

Agora sim entendo o texto profético de Guimarães Rosa, que jamais antes me parecera tão pleno de sentido: "A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação - porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada..."

Depois da noite de Natal, ainda veio o Réveillon. Festa no meio da multidão, música, banho de mar com roupa e tudo. Iemanjá abençoou. Eu agradeci porque ainda vivi pra vê-lo mais feliz, mais bonito, mais bêbado e mais dançante que nunca. Eu, tão jovem, dancei – mais feliz, mais bonita, mais bêbada, mais muito que meu antes com ele. Eu, tão velha moribunda, pensei que, hoje, talvez tivesse medo de estragar esse ele tão melhor que aquele nós.

Daqui a dois dias, faz dois anos que tudo terminou. Daqui a dois dias mais dois, ele completa dois anos mais do que tinha quando tudo terminou. Natal, Réveillon, aniversário de fim, anos de vida. Muitos motivos para homenagens e recomeços. Se amigos? Não digo “apenas” porque é muito. Porque é muito bonito. Porque, pela primeira vez, penso que tenho um motivo para morrer em paz.