quinta-feira, março 17, 2005

Holandês voador

Tu pouco sabes, desconheces João e Maria
Essa tua boca vazia, sem beijo é banguela
Mãos que nada agarram, pincel nem aquarela
Desta vida nem viu a solidão dos Buendía

Se tuas pernas não correm, como voas para mim?
Simples culpa sequer há para teus atos pueris
Apenas ensaias sorrisos menos que infantis
Aos tropeços te enroscas no calor tupiniquim

Quando chamo, tua resposta é de quem ouve
Bem sei, descobri, minha fala não te diz nada
A menos que nela reconheças a voz da amada
No versículo, teu rosto: Lucas quatro, dez, doze

Com teu corpo enrugado, por favor, venha aqui
De longe, guardo comigo todos os odores
Distante ensaio meus gestos, prevejo tuas cores
É hora, meu amor, de trocar a fralda de pipi

Holandês voador

Tu pouco sabes, desconheces João e Maria
Essa tua boca vazia, sem beijo é banguela
Mãos que nada agarram, pincel nem aquarela
Desta vida nem viu a solidão dos Buendía

Se tuas pernas não correm, como voas para mim?
Simples culpa sequer há para teus atos pueris
Apenas ensaias sorrisos menos que infantis
Aos tropeços te enroscas no calor tupiniquim

Quando chamo, tua resposta é de quem ouve
Bem sei, descobri, minha fala não te diz nada
A menos que nela reconheças a voz da amada
No versículo, teu rosto: Lucas quatro, dez, doze

Com teu corpo enrugado, por favor, venha aqui
De longe, guardo comigo todos os odores
Distante ensaio meus gestos, prevejo tuas cores
É hora, meu amor, de trocar a fralda de pipi

sexta-feira, março 04, 2005

Na morada dos entulhos


Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia entrar nela, não
Porque na casa não tinha chão
Ninguém podia dormir na rede
Porque na casa não tinha parede
Ninguém podia fazer pipi
Porque penico não tinha ali
Mas era feita com muito esmero
Na rua dos Bobos
Número zero
(A Casa, de Vinicius de Moraes)

Esta semana tive que procurar umas fotos de três anos atrás, de um ensaio que fiz para a aula de fotojornalismo sobre trabalho informal no Rio de Janeiro. Por conta disso, na segunda-feira dormi às cinco da manhã, revirei a casa inteira, e nada. Só encontrei mesmo no dia seguinte, mas, até que isso acontecesse, eu fui jogando muita coisa fora. Acho engraçado eu ter tanta tralha acumulada, já que limpo tudo com uma freqüência bastante razoável.

Gosto de abrir as janelas, limpar as gavetas, arrumar os armários, pois não consigo deixar de perceber nisso uma metáfora da minha própria condição. Tomo o exemplo recente: não é à toa que, depois de cinco anos de faculdade, eu tenha me desfeito de tantos trabalhos, cadernos, folhas fotocopiadas e redações. Porque um ciclo se completou. O jogar fora é um ato de escolha, quase sempre. E de autoconhecimento, de percepção sensível. De compreensão das próprias mudanças, de coragem para se desvencilhar do tanto que a dinâmica da vida exige. Seria falta de apego da minha parte? Não mesmo. Tenho extrema dificuldade com os bilhetinhos trocados nas salas de aula de dez, doze anos atrás. Eu queria, sim, era não me apegar tanto. E a grande questão são os objetos que só fazem sentido pra mim mesma.

O meu ex-namorado era um excelente ilustrador. Mas ele nunca me desenhava. Certa noite, em um restaurante que fica numa das esquinas que mais gosto, enquanto falávamos de arte, construção da realidade, fé e tanto mais, ele fez um desenho de nós dois no papel que forrava a bandeja. Então, pediu que eu escrevesse algo sobre aquele momento e, em seguida, propôs que fôssemos embora e deixássemos o desenho ali mesmo.

Era a primeira vez que eu era desenhada, não podia abrir mão daquilo! Mas ele, por fim, me convenceu ao contar a história dos budistas, que se dedicam durante um ano na confecção de mosaicos de areia que são, no fim, pisados e desmanchados por um dos monges. A idéia é que o impulso maior seja a crença em um fazer e refazer constante, sem que as obras daí decorrentes tornem-se armadilhas, motivos de contemplações vazias capazes de nos aprisionar.

Tendo virado as costas para uma das manifestações de carinho que mais me emocionara até então, confesso que nos divertimos ao imaginar o que seria feito do desenho quando fosse encontrado. A resposta veio em duas semanas: um casal de amigos almoçou no mesmo lugar, e daí tomamos conhecimento de que estava numa moldura, pendurado na parede do restaurante. Quando voltamos lá para ver, os funcionários me reconheceram por causa da própria ilustração e logo o gerente foi chamado, porque estavam todos, há dias, curiosos para saber quem eram os autores da brincadeira.

Um ano depois disso tudo ter acontecido, com nosso relacionamento tão desmanchado quanto os mosaicos de areia dos budistas, voltei lá e pedi para ver o quadro de novo. Só para dar uma espiada, já que não estava mais na parede, mas na sala da gerência. Quando souberam que não mais existia o casal representado naquele papel emoldurado, me deram o quadro de presente. E este foi um dos meus momentos de maior angústia... Comigo aquele desenho não significava coisa alguma, não contava mais histórias, não me trazia lembranças, não me falava de um passado. Porque jamais foi feito para ser meu. Mas, até hoje, ele continua lá, numa parede coadjuvante da minha casa, por onde pouco passo, sem qualquer função, pois ainda não consegui jogá-lo fora.

Apesar da disposição de me "arejar", minha casa ainda resta cheia dos meus entulhos. E não importa de quem seja a casa, é quase sempre assim. Minha casa, sua casa. Qualquer e toda casa. Casa de boneca, da infância, da imaginação. Habitação de lembranças e casulo de sonhos. Vivenda de sentimentos. Casa feita de doces, como a de João e Maria. Casa de marimbondo. Casa de muitas moradas, como a do Pai.

Em “Cem anos de solidão”, o lar dos Buendía não é apenas o cenário das tramas familiares. Cada nova alegria é materializada na casa, que se enche de luz, de borboletas, de jardins. E tudo floresce, respira, pulsa, vive. Mas, de tempos em tempos, ela também cheira a mofo, é invadida pelo mato crescido, pelos insetos que perambulam nas paredes rachadas.

Na época da Páscoa, os judeus ficam sete dias sem comer o que eles chamam de “hametz” - o fermento, que representa a impureza. A recomendação é bíblica: “Fermento não se achará contigo por sete dias, em todo o teu território” (Deuteronômio, 16:4). Mesmo nos dias de hoje, as famílias mais zelosas de suas tradições abrem a dispensa e queimam todo o fermento existente em suas casas. Como se não bastasse, usam louças especiais, que jamais tiveram contato com alimentos impuros. E as paredes de muitas casas recebem uma mão de tinta fresca a cada ano, como sinal de renovação.

Ainda na bíblia, outra passagem sobre a Páscoa e mais uma recomendação de Jeová: “Não oferecerás o sangue do meu sacrifício com pão levedado, nem ficará gordura da minha festa durante a noite até pela manhã” (Êxodo 23:18). Daí, penso que, talvez, o Deus do Antigo Testamento não estivesse tão preocupado com a impureza em si, mas com o ato de renovação. Apesar da festa e da alegria da véspera, nas minhas interpretações tortas ouço um conselho: o de esperarmos o amanhã varridos de certos acúmulos, alguns até provenientes dos momentos felizes. Para que nem essas mesmas alegrias sejam impedimento para que se siga em frente.

Na morada dos entulhos


Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia entrar nela, não
Porque na casa não tinha chão
Ninguém podia dormir na rede
Porque na casa não tinha parede
Ninguém podia fazer pipi
Porque penico não tinha ali
Mas era feita com muito esmero
Na rua dos Bobos
Número zero
(A Casa, de Vinicius de Moraes)

Esta semana tive que procurar umas fotos de três anos atrás, de um ensaio que fiz para a aula de fotojornalismo sobre trabalho informal no Rio de Janeiro. Por conta disso, na segunda-feira dormi às cinco da manhã, revirei a casa inteira, e nada. Só encontrei mesmo no dia seguinte, mas, até que isso acontecesse, eu fui jogando muita coisa fora. Acho engraçado eu ter tanta tralha acumulada, já que limpo tudo com uma freqüência bastante razoável.

Gosto de abrir as janelas, limpar as gavetas, arrumar os armários, pois não consigo deixar de perceber nisso uma metáfora da minha própria condição. Tomo o exemplo recente: não é à toa que, depois de cinco anos de faculdade, eu tenha me desfeito de tantos trabalhos, cadernos, folhas fotocopiadas e redações. Porque um ciclo se completou. O jogar fora é um ato de escolha, quase sempre. E de autoconhecimento, de percepção sensível. De compreensão das próprias mudanças, de coragem para se desvencilhar do tanto que a dinâmica da vida exige. Seria falta de apego da minha parte? Não mesmo. Tenho extrema dificuldade com os bilhetinhos trocados nas salas de aula de dez, doze anos atrás. Eu queria, sim, era não me apegar tanto. E a grande questão são os objetos que só fazem sentido pra mim mesma.

O meu ex-namorado era um excelente ilustrador. Mas ele nunca me desenhava. Certa noite, em um restaurante que fica numa das esquinas que mais gosto, enquanto falávamos de arte, construção da realidade, fé e tanto mais, ele fez um desenho de nós dois no papel que forrava a bandeja. Então, pediu que eu escrevesse algo sobre aquele momento e, em seguida, propôs que fôssemos embora e deixássemos o desenho ali mesmo.

Era a primeira vez que eu era desenhada, não podia abrir mão daquilo! Mas ele, por fim, me convenceu ao contar a história dos budistas, que se dedicam durante um ano na confecção de mosaicos de areia que são, no fim, pisados e desmanchados por um dos monges. A idéia é que o impulso maior seja a crença em um fazer e refazer constante, sem que as obras daí decorrentes tornem-se armadilhas, motivos de contemplações vazias capazes de nos aprisionar.

Tendo virado as costas para uma das manifestações de carinho que mais me emocionara até então, confesso que nos divertimos ao imaginar o que seria feito do desenho quando fosse encontrado. A resposta veio em duas semanas: um casal de amigos almoçou no mesmo lugar, e daí tomamos conhecimento de que estava numa moldura, pendurado na parede do restaurante. Quando voltamos lá para ver, os funcionários me reconheceram por causa da própria ilustração e logo o gerente foi chamado, porque estavam todos, há dias, curiosos para saber quem eram os autores da brincadeira.

Um ano depois disso tudo ter acontecido, com nosso relacionamento tão desmanchado quanto os mosaicos de areia dos budistas, voltei lá e pedi para ver o quadro de novo. Só para dar uma espiada, já que não estava mais na parede, mas na sala da gerência. Quando souberam que não mais existia o casal representado naquele papel emoldurado, me deram o quadro de presente. E este foi um dos meus momentos de maior angústia... Comigo aquele desenho não significava coisa alguma, não contava mais histórias, não me trazia lembranças, não me falava de um passado. Porque jamais foi feito para ser meu. Mas, até hoje, ele continua lá, numa parede coadjuvante da minha casa, por onde pouco passo, sem qualquer função, pois ainda não consegui jogá-lo fora.

Apesar da disposição de me "arejar", minha casa ainda resta cheia dos meus entulhos. E não importa de quem seja a casa, é quase sempre assim. Minha casa, sua casa. Qualquer e toda casa. Casa de boneca, da infância, da imaginação. Habitação de lembranças e casulo de sonhos. Vivenda de sentimentos. Casa feita de doces, como a de João e Maria. Casa de marimbondo. Casa de muitas moradas, como a do Pai.

Em “Cem anos de solidão”, o lar dos Buendía não é apenas o cenário das tramas familiares. Cada nova alegria é materializada na casa, que se enche de luz, de borboletas, de jardins. E tudo floresce, respira, pulsa, vive. Mas, de tempos em tempos, ela também cheira a mofo, é invadida pelo mato crescido, pelos insetos que perambulam nas paredes rachadas.

Na época da Páscoa, os judeus ficam sete dias sem comer o que eles chamam de “hametz” - o fermento, que representa a impureza. A recomendação é bíblica: “Fermento não se achará contigo por sete dias, em todo o teu território” (Deuteronômio, 16:4). Mesmo nos dias de hoje, as famílias mais zelosas de suas tradições abrem a dispensa e queimam todo o fermento existente em suas casas. Como se não bastasse, usam louças especiais, que jamais tiveram contato com alimentos impuros. E as paredes de muitas casas recebem uma mão de tinta fresca a cada ano, como sinal de renovação.

Ainda na bíblia, outra passagem sobre a Páscoa e mais uma recomendação de Jeová: “Não oferecerás o sangue do meu sacrifício com pão levedado, nem ficará gordura da minha festa durante a noite até pela manhã” (Êxodo 23:18). Daí, penso que, talvez, o Deus do Antigo Testamento não estivesse tão preocupado com a impureza em si, mas com o ato de renovação. Apesar da festa e da alegria da véspera, nas minhas interpretações tortas ouço um conselho: o de esperarmos o amanhã varridos de certos acúmulos, alguns até provenientes dos momentos felizes. Para que nem essas mesmas alegrias sejam impedimento para que se siga em frente.