sexta-feira, outubro 26, 2007

Álbum de família - parte I

A Dani e eu, há uns seis anos, fizemos o trato de morarmos no mesmo prédio depois de casadas. Dizíamos também que na casa de uma e de outra haveria um quarto de hóspedes e nos revezaríamos nas visitas frequentes. Não me lembro bem, mas acho que a idéia partiu dela, que não gostava de pensar na possibilidade de ficar longe de mim. Apesar da Dani ser quatro anos e meio mais velha, eu a protegia. Ela corria pra minha cama quando tinha pesadelo – ela sempre tinha pesadelo – e muitas vezes cismava de dormir de luz acesa. Quando eu tinha 18 anos, no Kibbutz, recebi uma carta sua que dizia algo como: “agora não tenho mais como pular na sua cama quando sinto medo. Para amenizar a situação, pedi para papai comprar uma lâmpada fraquinha, assim não durmo no escuro. O cara da loja indicou a luz azul pois, segundo a cromoterapia, acalma o bebê. Papai só ficou com vergonha de dizer que o bebê tinha 23 anos”.

Ela sempre se assustava com tudo, via fantasmas. Eu não, era mais deste mundo, então a Dani, quando éramos crianças, tinha que se esforçar muito para me convencer a ficar no banheiro enquanto ela tomava banho – e aqueles banhos demorados que só ela sabe tomar. Ela me enrolava de muitas maneiras e era criativa demais. Primeiro tentou me convencer dizendo que, na minha vez de tomar banho, me esperaria. Mas não colou porque eu nunca sentia medo, logo não precisava do favor. Então passou a me pedir para cantar as musiquinhas que eu havia aprendido na escola, e era um tal de: “repete aquela primeira! Gostei tanto!”, “mais uma vez!”, e assim o banho acabava. Foram muitos os truques, piadas e segredos que ela inventou pra me manter no banheiro durante várias noites da minha infância.

Na verdade, eu sentia medo sim, mas era de umas coisas que ela fazia. Meu irmão do meio e eu muito frequentemente chorávamos depois de brincar de algum jogo de tabuleiro com dados ou roleta. A Dani, na sua vez de jogar, olhava pra gente com um sorriso pavoroso e repetia o número que ela queria: “Seis, seis, seis”. E dava o seis. Na nossa vez, valia a mentalização dela também, mas com objetivo inverso: “um, um, um”. E dava o um. Saíamos choramingando, meu irmão e eu: “Mãaaae! Olha a Dani fazendo macumba!”.

Seus poderes tornaram a minha infância mágica. Eu não podia ver o que minha irmã via, não recebia a visita da dindinha e da vovó mortas, mas imaginava tudo. E ela ainda tinha essa tal de força mental assustadora. Como se não bastasse, era manipuladora e sacana ao extremo. Coitadas das outras crianças, que eram persuadidas a fazer trocas absurdas e perdiam os melhores papéis de carta pra ela. Comiam balas recheadas com pimenta e, sem entender muito bem o que acontecia, ainda pediam mais. Tenho fotos do Artur, meu irmão, vermelho de tanto chorar, aos três anos, com colares enormes, brincos de pressão e uma maquiagem bizarra. Obra de quem?

Artur, sempre o primeiro a dormir e com seu sono pesado, sofria. Não raro acordava aos berros, todo cagado de pasta de dente ou maquiado, ou simplesmente puto pelo sono interrompido depois de horas de cosquinha no nariz feita com o pincel da escola. Óbvio que eu, só por assistir, acabava apanhando no dia seguinte. Na Dani, dois anos mais velha, ele não podia bater.

Como Artur nasceu com problemas respiratórios, a cena dele dormindo era motivo de riso: boca aberta, baba que não acabava mais, ronco. Mas a Dani conseguia transformar em chacota também o momento em que ele acordava. Muitas vezes nós duas ficávamos conversando enquanto ele já estava no décimo sono. De repente abria os olhos e pedia pra apagarmos a luz. A Dani então me cutucava, dava uma risadinha, e começava a falar mais baixo, olhando pra ele: “Ih, olha só! Ele tá sonâmbulo. Vamos tomar cuidado pra ele não despertar”. Artur tentava explicar que já havia acordado e queria apenas que apagássemos a luz. E ela continuava: “Não responde, Gisele, porque pode ser perigoso. Não devemos acordar os sonâmbulos”. E ficavam um tempão nessa até que ele se exaltava: “eu não tô dormindoooo”, e ia reclamar com meus pais.

Sabe-se lá o porquê da Dani nunca receber punição. Acho que meu pai era zen demais e minha mãe muito rude e ingênua pra processar aquelas artimanhas. Ou talvez o código dos pais preveja penas somente para atos de agressão física e não para tortura psicológica mirim.

E eu, pra variar, levava um sacode do Artur no dia seguinte...


(continua no próximo post)

quinta-feira, agosto 30, 2007

Conto do prazer em ré

Volto no tempo, dois anos antes, quando nos conhecemos. Amigos em comum, interesses mesmos e vem a empatia fácil. Descamba para admiração. Ok, nada demais. A linha de segurança é forte. Sem tesão não há solução. De minha parte não há tesão, logo tudo está prévia e irremediavelmente solucionado. Porque não existe perigo, nem penso em me proteger. A serpente sequer dá-se ao trabalho de chegar em silêncio. Ao contrário, faz música com seu chiado. E, porque gosto de ouvir, aproveita e vem se enroscando. E porque gosto de sentir, já não a afasto mais.

Ela já faz parte de mim, embora eu recuse os frutos que vez e outra me oferece. Com sua alma de serpente, ela sabe que qualquer dia provo do caminho do pecado, então apenas espera, pacientemente, o tempo preciso.

Chega por fim o momento da sedução, do degustar o fruto, da consciência da nudez num paraíso que já não há. Com olhos que vêem o Bem e o Mal, escolho o Pior. Deus se cala e apenas chora, daquele jeito dolorido de quem paga o preço de confiar na humanidade e conceder-lhe liberdade.

E então, o agora. Ergo-me. Já é chegada a hora da redenção e vida eterna não se concede a quem rasteja. Sigo com fé porque o torpor de todo veneno um dia se extingue.

Conto do prazer em ré

Volto no tempo, dois anos antes, quando nos conhecemos. Amigos em comum, interesses mesmos e vem a empatia fácil. Descamba para admiração. Ok, nada demais. A linha de segurança é forte. Sem tesão não há solução. De minha parte não há tesão, logo tudo está prévia e irremediavelmente solucionado. Porque não existe perigo, nem penso em me proteger. A serpente sequer dá-se ao trabalho de chegar em silêncio. Ao contrário, faz música com seu chiado. E, porque gosto de ouvir, aproveita e vem se enroscando. E porque gosto de sentir, já não a afasto mais.

Ela já faz parte de mim, embora eu recuse os frutos que vez e outra me oferece. Com sua alma de serpente, ela sabe que qualquer dia provo do caminho do pecado, então apenas espera, pacientemente, o tempo preciso.

Chega por fim o momento da sedução, do degustar o fruto, da consciência da nudez num paraíso que já não há. Com olhos que vêem o Bem e o Mal, escolho o Pior. Deus se cala e apenas chora, daquele jeito dolorido de quem paga o preço de confiar na humanidade e conceder-lhe liberdade.

E então, o agora. Ergo-me. Já é chegada a hora da redenção e vida eterna não se concede a quem rasteja. Sigo com fé porque o torpor de todo veneno um dia se extingue.

quarta-feira, agosto 29, 2007

Das primaveras aos 26

Faz alguns dias, por conta do meu aniversário que vinha chegando (e chegou ontem), lembrei que há dois anos planejei escrever um texto sobre o significado da data pra mim.

Aos 24 anos, tive vontade de escrever sobre o que me fazia não gostar de aniversários. Pensei em falar do meu aborrecimento com organização de festa pra mim mesma, em ter que dizer para as pessoas que faço questão da presença delas quando na verdade entendo que todos têm suas urgências, em fazer as pessoas saírem de casa em dia de semana. E tinha também a implicância com bolos, parabéns e celular tocando o dia inteiro. Desejei confessar a minha total inabilidade em reunir grupos diferentes e meu incômodo de me saber um elo desajustado entre eles. Quis muito externar o quanto achava sem sentido comprar roupas e sapatos novos para a data especial, porque depois eles não serviriam para os outros dias da minha vida que, de modo geral, é feita de jornadas extraordinariamente comuns.

Ontem, aos 26 anos, eu continuava achando o mesmo. Ainda assim, mandei e-mail pros chegados e marquei encontro de última hora no bar que mais gosto, em plena terça-feira chuvosa. Liguei pra confirmar algumas queridas presenças. Recebi com alegria todos os parabéns e fiquei feliz porque o celular tocou irritantemente o dia inteiro.

Comprei um sapato novo que ficará lindo com as minhas calças jeans. Usei um vestido da Beca, que adora me fazer experimentar suas roupas e brincar de me maquiar. Ela sempre me dizia que queria um dia fazer eu ficar poderosa. E conseguiu. A Pri chegou e saímos de casa, eu quase borrando os olhos de emoção, de tão bonita que fiquei depois dos cuidados da Beca, de seus cremes, maquiagens e perfumes. Pensei que esse negócio de ser gostada faz mesmo a gente se sentir com poderes especiais.

No bar, amigos de faculdade, do trabalho, da dança, da vizinhança. Amigos dos amigos, namorados das amigas, namoradas dos amigos, mais aquela gente que simplesmente encontrei pela vida. Dorien, Nique, João, Rê, Ed, Léo, Clarice, Diogo, Geraldine, Gus, Magoo, Di, Dê, Beto, Roblis, Tante...

Eu, totalmente inábil para reunir grupos diferentes, pulei de mesa em mesa, falei besteira, apresentei todo mundo pra todo mundo, contando sempre um caso, dizendo por que cada um ali era especial. Bebi uns drinks com tequila e fiz ainda mais jus ao meu posto de elo desajustado (e feliz!) entre eles.

Só faltou o bolo, mas aí também já seria demais...

terça-feira, agosto 21, 2007

Dos acúmulos



Quanto mofo nesta virtualidade. Não por meu descuido ou falta de vontade, que fique claro. Ah... me gosto mais quando escrevo. Pessoas me redescobrem ao me ler, aconteceu diversas vezes. Os comentários eu coleciono na memória, mas um destaco agora: “Gi, você escrevendo é clara e serena” (bem diferente da versão 3D, é o que posso intuir). Outro bem oportuno, de alguém então muito, muito presente na minha vida: “li seus textos e me dei conta de que nunca te ouvi”. E aquele do amigo há 14 anos: “que pretensão alguém achar que te conhece”.

Sim, se trata de um retorno “umbiguista” feito outros, porque de novo me acumulei demais. “Orai e vigiai sem cessar”, dizia São Paulo. “Use Cepacol diariamente e visite seu dentista regularmente”. Tudo, tudo nessa vida segue a lógica da manutenção. Não posso me acumular, eu sei e sei. Escrever sempre, ainda não aprendi? Essa mania de engolir tudo pra vomitar de uma vez.. De novo a sutileza de existir num mundo físico em que todo corpo tende ao repouso, mas o tempo não pára.

A ordem do dia é entender melhor as conseqüências de meus passos. Quase sempre me parece fácil sair correndo, me sobra fôlego e energia para disparar, e até aí nada de errado. De repente me canso, e me vejo de novo sozinha. Ontem me senti assim, e aí lembrei de um post-desabafo, de dezembro de 2005, de título “marido sem lágrimas”, autoria da Helô, mulher que se sabe mulher, poderosa e eficiente. Transcrevo abaixo:

"vontade de chorar, mas cadê as lágrimas?
assim como no samba, queria desabafar o que sinto no peito e não posso dizer. ok, posso escrever.
quero um marido cuidando de mim."


Até ontem esse era o tipo de confissão de me provocar calafrios. Pura afetação de balzaquianas inconsoláveis que não descobriram como se amar e se completar. Ok, eu me amo, me sinto completa e ontem me descobri uma balzaquiana inconsolável – e afetada.

No melhor estilo mulher almodovariana, cabelos presos no alto da cabeça, blusa e unhas vermelhas, ontem borrei a maquiagem dos olhos porque eu quero um marido cuidando de mim.

segunda-feira, junho 04, 2007

Sem paranóia...

Preto e branco. Ininterrupto ciclo, do casulo pro céu e vice-versa, larva e borboleta e larva de novo, por ainda não saber se é melhor o vôo ou a preparação – ansiosa, natural e feliz – pelo dia de voar. Andando assim, de um extremo a outro, só pra tornar obrigatória a passagem pelo caminho do meio e não perder seu norte móvel de vista. Sauna e ducha gelada pra agitar o desfile do sangue pelas veias, fervendo tudo por contraste. É isso. Metanóia sem paranóia.

OBS - A quem interessar possa, a Digestora revive. http//digerindo.blogspot.com

Conto do prazer em dó

Sentada no chão, apertava com força o telefone para controlar a dor que tentava lhe escapar pela boca em forma de grito, impropérios e vômito. Deixou-se ferir lentamente por cada uma daquelas palavras que lhe chegavam de longe. Depois, telefone de volta ao gancho, encostou o corpo soluçante numas das portas, mas se levantou depressa porque era orgulhosa demais pra sofrer feito personagem qualquer de novela ordinária.

Escolheu a música, despiu-se, dançou forte e cantou alto. Lavada de suor e lágrima, esboçou um sorriso como se desse boas-vindas àquela dor fininha e maldita que conheceu poucas e marcantes vezes, que conseguiu expelir de si em outros tempos, mas que agora retornava triunfante: dor de felicidade não vivida. Dentro dela, um abismo de sentimentos que novamente dariam em lugar nenhum. Uma vez mais, fora muita fé pra pouco santo.

Copo pela metade pra uma sede inteira. Gota de água benta pra legião de lazarentos. Meia promessa de vida eterna pra dois mil e seis moribundos. Um prato de feijão pra dezessete desvalidos. Ela ganhara um palmo de terra pra sufocar vinte e oito brotos de esperança. “Ao vencedor as batatas”, disse para si, rindo de dó.

Ele era um homem casado. Ofereceu a ela palavras e depois carícias. Despediu-se de repente prometendo voltar de vez. Pouco depois, telefonou desfazendo os planos e despedaçando os sonhos. Ele mudou de idéia alegando mal-estar da consciência. Ela se calou, sem idéia e quase inconsciente de tanto mal-estar.

Ela pediu conselhos a três santas de sua devoção e todos os sagrados corações de moles Marias abençoaram a dúvida do pobre diabo e se benzeram acusando-na de pecados madalenos. Sentindo-se traída, ela despojou-se de sua fé, jogou fora todas as imagens, terços, incensos e escapulários. Vestiu uma blusa decotada, pintou as unhas de vermelho, untou-se de provocantes cheiros. Saiu às ruas. E em pouco tempo, estava cercada de devotos.

Conto do prazer em dó

Sentada no chão, apertava com força o telefone para controlar a dor que tentava lhe escapar pela boca em forma de grito, impropérios e vômito. Deixou-se ferir lentamente por cada uma daquelas palavras que lhe chegavam de longe. Depois, telefone de volta ao gancho, encostou o corpo soluçante numas das portas, mas se levantou depressa porque era orgulhosa demais pra sofrer feito personagem qualquer de novela ordinária.

Escolheu a música, despiu-se, dançou forte e cantou alto. Lavada de suor e lágrima, esboçou um sorriso como se desse boas-vindas àquela dor fininha e maldita que conheceu poucas e marcantes vezes, que conseguiu expelir de si em outros tempos, mas que agora retornava triunfante: dor de felicidade não vivida. Dentro dela, um abismo de sentimentos que novamente dariam em lugar nenhum. Uma vez mais, fora muita fé pra pouco santo.

Copo pela metade pra uma sede inteira. Gota de água benta pra legião de lazarentos. Meia promessa de vida eterna pra dois mil e seis moribundos. Um prato de feijão pra dezessete desvalidos. Ela ganhara um palmo de terra pra sufocar vinte e oito brotos de esperança. “Ao vencedor as batatas”, disse para si, rindo de dó.

Ele era um homem casado. Ofereceu a ela palavras e depois carícias. Despediu-se de repente prometendo voltar de vez. Pouco depois, telefonou desfazendo os planos e despedaçando os sonhos. Ele mudou de idéia alegando mal-estar da consciência. Ela se calou, sem idéia e quase inconsciente de tanto mal-estar.

Ela pediu conselhos a três santas de sua devoção e todos os sagrados corações de moles Marias abençoaram a dúvida do pobre diabo e se benzeram acusando-na de pecados madalenos. Sentindo-se traída, ela despojou-se de sua fé, jogou fora todas as imagens, terços, incensos e escapulários. Vestiu uma blusa decotada, pintou as unhas de vermelho, untou-se de provocantes cheiros. Saiu às ruas. E em pouco tempo, estava cercada de devotos.

sábado, maio 19, 2007

Conto do prazer em sol

Todos buscavam uma oportunidade para falar com o Mestre. Havia muito que o sábio homem não participava de grandes encontros públicos por se dedicar, desde uns tempos, à solitária tarefa de escrever um livro cujo penoso tema era a morte. Tomara para si a dura tarefa de discorrer sobre o que ninguém sabe ao certo, sobre esse que é o medo de tantos vivos. Talvez porque apenas os mais sábios compreendam a importância de morrer.

Em verdade, ele não se afastara do assédio dos seguidores apenas devido ao trabalho a que se entregara nos últimos meses. Naquele sábio homem pesavam a contagem de muitos anos e uma enfermidade que, ele bem sabia, o consumiria aos poucos e pra sempre, até o dia em que entenderia na prática o que agora tentava teorizar.

Apesar de debilitado, ele parecia sentir prazer em satisfazer seus discípulos; ora deixando-os inebriados com suas estórias de vida, ora contando divertidos causos, ora recitando algumas de suas poesias. Todavia, por vezes apenas os ouvia com seus olhos azuis firmes e suas frágeis mãos trêmulas.

Foi nessa ocasião, quando se encontrava distraído de seus pensamentos e dores, que ele a conheceu. Ela, uma mulher que ainda se esquecia de deixar pra trás a meninice, falava ao mestre de maneira eloqüente, mas com uma voz que lhe saía tímida. O esforço em aparentar desembaraço pretendia esconder o desconforto de se ver inesperadamente diante do tão respeitável mestre. Mas ele se fascinou: com as palavras escolhidas e também com as besteiras que escapuliam dos belos lábios daquela jovem de cabelos e olhos vibrantes de tão negros.

Tiveram muitas outras conversas. Os discípulos esperavam muito para ganhar alguns momentos da atenção que o sábio passou a dedicar exclusivamente àquela mulher.

Certa noite, aquele discípulo mais amado tomou-a pela mão, conduzindo-a até o quarto do sábio, que a esperava. Ficaram a sós. O Mestre parecia não se importar com o fato de vestir um ridículo pijama, mas se confessou envergonhado pela emoção adolescente que agora sentia. Contou-lhe, com seus olhos azuis doces e as pernas trêmulas de calor, que o coração batia outra vez. “Eu escrevo sobre a noite e você foi meu interlúdio de sol”, disse o sábio.

Depois da confissão, veio um pedido: “Eu gostaria de dormir de mãos dadas com você”. E citou a passagem bíblica em que o Rei Davi, já íntimo da velhice e beijando a face da morte, expressou o desejo de se deitar com uma virgem, apenas para que ela lhe aquecesse os pés.

A mulher, de tão menina, não conseguiu entender a beleza do pedido. Negou-se a atendê-lo. E se arrependeu pelo resto de seus dias.

Conto do prazer em sol

Todos buscavam uma oportunidade para falar com o Mestre. Havia muito que o sábio homem não participava de grandes encontros públicos por se dedicar, desde uns tempos, à solitária tarefa de escrever um livro cujo penoso tema era a morte. Tomara para si a dura tarefa de discorrer sobre o que ninguém sabe ao certo, sobre esse que é o medo de tantos vivos. Talvez porque apenas os mais sábios compreendam a importância de morrer.

Em verdade, ele não se afastara do assédio dos seguidores apenas devido ao trabalho a que se entregara nos últimos meses. Naquele sábio homem pesavam a contagem de muitos anos e uma enfermidade que, ele bem sabia, o consumiria aos poucos e pra sempre, até o dia em que entenderia na prática o que agora tentava teorizar.

Apesar de debilitado, ele parecia sentir prazer em satisfazer seus discípulos; ora deixando-os inebriados com suas estórias de vida, ora contando divertidos causos, ora recitando algumas de suas poesias. Todavia, por vezes apenas os ouvia com seus olhos azuis firmes e suas frágeis mãos trêmulas.

Foi nessa ocasião, quando se encontrava distraído de seus pensamentos e dores, que ele a conheceu. Ela, uma mulher que ainda se esquecia de deixar pra trás a meninice, falava ao mestre de maneira eloqüente, mas com uma voz que lhe saía tímida. O esforço em aparentar desembaraço pretendia esconder o desconforto de se ver inesperadamente diante do tão respeitável mestre. Mas ele se fascinou: com as palavras escolhidas e também com as besteiras que escapuliam dos belos lábios daquela jovem de cabelos e olhos vibrantes de tão negros.

Tiveram muitas outras conversas. Os discípulos esperavam muito para ganhar alguns momentos da atenção que o sábio passou a dedicar exclusivamente àquela mulher.

Certa noite, aquele discípulo mais amado tomou-a pela mão, conduzindo-a até o quarto do sábio, que a esperava. Ficaram a sós. O Mestre parecia não se importar com o fato de vestir um ridículo pijama, mas se confessou envergonhado pela emoção adolescente que agora sentia. Contou-lhe, com seus olhos azuis doces e as pernas trêmulas de calor, que o coração batia outra vez. “Eu escrevo sobre a noite e você foi meu interlúdio de sol”, disse o sábio.

Depois da confissão, veio um pedido: “Eu gostaria de dormir de mãos dadas com você”. E citou a passagem bíblica em que o Rei Davi, já íntimo da velhice e beijando a face da morte, expressou o desejo de se deitar com uma virgem, apenas para que ela lhe aquecesse os pés.

A mulher, de tão menina, não conseguiu entender a beleza do pedido. Negou-se a atendê-lo. E se arrependeu pelo resto de seus dias.

segunda-feira, maio 14, 2007

Conto do prazer em si

Havia algo de gozo inédito naquele dia em que se entregou ao seu ritual de prazer solitário. Desta vez, aqueles dedos – sempre tão úmidos que chegavam a enrugar – aqueles dedos estavam embebidos de uma vitória espessa cujo sabor jamais experimentara.

Fazia tempo ela se convencera de que precisava de um homem à sua imagem e semelhança: mistura de força e delicadeza, altivez e humildade, beleza simples e alma vibrante, sarcasmo e bondade, requinte e desprendimento, intelecto e sensibilidade. Yin e yang bem dosados. E êxtase pra esporrar em tudo.

Naquele dia as mãos percorreram caminhos há muito desbravados, mas uma grande estréia se desenhou no pensamento. Pela primeira vez, era o seu próprio rosto que lhe sorria naquele corpo imaginário que criara pra se satisfazer. Assim refletida, sentiu prazer em dobro. Possuiu-se duplamente, da maneira que os homens nunca souberam como. Ou como nunca souberam que.

Dali pra frente tornou-se refém de si. E nunca mais deixou de sorrir.

Conto do prazer em si

Havia algo de gozo inédito naquele dia em que se entregou ao seu ritual de prazer solitário. Desta vez, aqueles dedos – sempre tão úmidos que chegavam a enrugar – aqueles dedos estavam embebidos de uma vitória espessa cujo sabor jamais experimentara.

Fazia tempo ela se convencera de que precisava de um homem à sua imagem e semelhança: mistura de força e delicadeza, altivez e humildade, beleza simples e alma vibrante, sarcasmo e bondade, requinte e desprendimento, intelecto e sensibilidade. Yin e yang bem dosados. E êxtase pra esporrar em tudo.

Naquele dia as mãos percorreram caminhos há muito desbravados, mas uma grande estréia se desenhou no pensamento. Pela primeira vez, era o seu próprio rosto que lhe sorria naquele corpo imaginário que criara pra se satisfazer. Assim refletida, sentiu prazer em dobro. Possuiu-se duplamente, da maneira que os homens nunca souberam como. Ou como nunca souberam que.

Dali pra frente tornou-se refém de si. E nunca mais deixou de sorrir.

sábado, maio 05, 2007

Em tempo

"A tristeza é senhora / Desde que o samba é samba é assim"

Branda ausência de porvir

Por que me nego tanto a escrever sobre o amor? Todos, absolutamente todos os dias eu me flagro com pensamentos que se referem, diretamente ou não, a esse tal de amor. Sim, falo daquele amor que li nos livros, que assisti em filmes e que protagonizei algumas vezes. Esse tal de amor romântico me consome precisamente por tudo que rechaço nele, por tudo o que há de cristalizações, pelas quase impossíveis desconstruções, pelas certezas involuntárias que rondam mentes e veias palpitantes.

Há alguns anos meu coração não conhece esse amor. Só às vezes ele se ocupa com a lembrança de algum ardor, agonia ou êxtase que restam espalhados em trechos esquecidos da minha estrada empoeirada. Nessas horas, eu até que sinto saudades do que não vivi. Mas faz tempo que me abrir para uma vivência a dois não representa mais tanto calor. Não sei se voltarei a senti-lo, e isso não significa descrença ou proteção. Apenas que eu não sei. E resolvi me libertar do meu porvir, ou da ausência de vinda no meu coração.

Branda ausência de porvir

Por que me nego tanto a escrever sobre o amor? Todos, absolutamente todos os dias eu me flagro com pensamentos que se referem, diretamente ou não, a esse tal de amor. Sim, falo daquele amor que li nos livros, que assisti em filmes e que protagonizei algumas vezes. Esse tal de amor romântico me consome precisamente por tudo que rechaço nele, por tudo o que há de cristalizações, pelas quase impossíveis desconstruções, pelas certezas involuntárias que rondam mentes e veias palpitantes.

Há alguns anos meu coração não conhece esse amor. Só às vezes ele se ocupa com a lembrança de algum ardor, agonia ou êxtase que restam espalhados em trechos esquecidos da minha estrada empoeirada. Nessas horas, eu até que sinto saudades do que não vivi. Mas faz tempo que me abrir para uma vivência a dois não representa mais tanto calor. Não sei se voltarei a senti-lo, e isso não significa descrença ou proteção. Apenas que eu não sei. E resolvi me libertar do meu porvir, ou da ausência de vinda no meu coração.

Inverno de viver

O friozinho de ontem me fez reviver. Definitivamente meu tempo de verões escaldantes se foi. O inverno que se aproxima me parece mágico. Me dei conta de que as boas e banais lembranças de anos recentes se referem a invernos, a céus de junho no Rio de Janeiro. Há três anos atrás, nesta mesma época, senti vontade de fazer curso de montanhismo só pra ter o céu do Rio de Janeiro mais próximo de mim.

A euforia do verão perdeu a magia. Não há tristeza nisso, afinal hoje aguardo a chegada do outono, inverno e primavera com a mesma ansiedade infantil que antes eu reservava exclusivamente aos dias de ápice do calor.

Eu me encanto com a contrição invernal. Mistério de algo que não se dá, que pede pra ser descoberto. E descortinando o inverno a gente encontra a primavera.

Digerindo o fruto esquecido...

Eu, que me canso tanto de mim mesma, senti saudade de uma parte que julgava apodrecida, que matei achando que era pra sempre. Não mais será. Hoje, revivo por aqui, porque só plantar dói. Certas horas é preciso saber pegar o fruto maduro, comê-lo, e descansar na sombra, digerindo...

Digerindo o fruto esquecido...

Eu, que me canso tanto de mim mesma, senti saudade de uma parte que julgava apodrecida, que matei achando que era pra sempre. Não mais será. Hoje, revivo por aqui, porque só plantar dói. Certas horas é preciso saber pegar o fruto maduro, comê-lo, e descansar na sombra, digerindo...

sexta-feira, maio 04, 2007

Sobre risos e rugas

Eu estava feliz e minhas amigas foram tão brochantes com minhas novidades que isso me deprimiu. Não apenas porque me senti muito só na minha felicidade, mas porque me invadiu uma profunda preocupação com elas, e eu já não consegui mais deixar de imaginá-las fazendo sexo com aquela mesma cara sem graça, de cu sem dono. Mania minha de achar que tesão é estado de espírito e que transcende quartos, paredes, camas e amantes. Nos meus dias de muito tesão na vida, me envergonho de conversar com homens, receio que eles me achem interessante demais, sem que essa seja minha intenção. Então, tento me enfeiar de alguma forma, pra me concentrar no que estou sentindo e querendo transmitir, porque não se pode confundir, e aí me recuso a ser sensual. Tenho certas vaidades, mas também me dou o direito de vestir roupa larga, calcinha grande, fazer coque no cabelo e prender com lápis, usar óculos, chinelo com meia.

Um cara era apaixonado por mim, e um dia eu vivi um lance tão bacana que fiquei com muita vontade de compartilhar e, por acaso, ele foi a primeira pessoa que encontrei. Então, tava eu lá, em alfa, contando o que havia acontecido, e quando dei por mim vi que ele me ouvia com uma cara de bobo, os coraçõezinhos pulavam da cabeça, e eu perguntei por que ele me olhava daquele jeito, e ele suspirou e me disse que era maravilhoso me ouvir. Estragou tudo. O cara não tava nem aí pro que eu falava, e isso me preocupou seriamente porque um dia serei uma velha pelancuda, então acho que ninguém mais vai me ouvir. Mas ali ele me ouvia. Não pelo que eu dizia propriamente, pois naquele momento eu tive como certo o fato de que se eu peidasse ele interpretaria como poesia gaseificada.

Ah, preciso ser honesta: nesse dias em que tenho tesão em tudo, em ver, em cheiros, a verdade é que eu mesma sinto vontade de me comer. A que ponto chego... Dia desses a Lu me disse: “Amiga, você se arreganha tanto pra vida que um dia o cosmo vai te foder”.

Mas sou fascinante apenas e enquanto preservo meu muro e mantenho meu espaço. Se eu abrir a guarda, afugento. Sempre foi assim e não acuso ninguém. Para tal pecado não há condenação. Porque quando eu me abro é feito baú com um monte de brinquedo guardado: cai uma avalanche de novidade esquecida, no início é aquela felicidade, mas depois vem a frustração de não saber o que fazer com tanta diversão esparramada. Sinto que as pessoas têm uma enorme dificuldade de brincar comigo e não as julgo por isso. Minha exaltação é castigo. Pra me prevenir de mim, resolvi cortar o meu rabo e ficar cotó, assim não corro o risco de, na primeira emoção infantil, eu sair me abanando feliz por aí.

Tenho uma crença irritante de me considerar predestinada à missão de tornar este mundo melhor, me julgo responsável por salpicar o Universo de beleza, e daí entro numa de querer espalhar sorrisos e compartilhar minha felicidade, só que isso não existe. Quando estou extremamente feliz e divido isso com os amigos, eles fazem cara de peido – que pra mim não é poesia gaseificada – e eu então fico ainda mais radiante, num esforço de ser mais óbvia, quase dizendo, “porra, eu tô feliz! Fique também, por favor!”. E aí eu começo a ficar muito cansada de me exaltar, e minha felicidade se transforma numa grande fraqueza, porque minhas energias se esvaem nessa de tanto pular de alegria. E porque gasto minha energia em tentativas saltitantes, em estados de alegria eu fico muito vulnerável a qualquer tristeza.

Rir demais marca a expressão. Dá ruga tanto quanto chorar. Todo mundo faz careta quando a gargalhada é forte que nem choro. Mas expressão de Monalisa é sempre obra-prima, e porque não diz algo propriamente, é aí que a gente fica em paz, apenas tentando decifrar o que sente quando vê, e essa tentativa já é o sentir tomando conta.

Depois de passar algumas horas com meus amigos, as sensações podem ser duas, extremo cansaço ou paz, e agora me vem a constatação que empiricamente eu já provara: quando falo muito, discuto, me exalto, sou feliz, me bate em seguida uma angústia que é essa tal falta de energia. Mas nas vezes em que apenas ouço, presto atenção nas discussões sobre o mundo, mas não participo delas, porque na verdade ninguém se ouve mais, quando minha postura é mais recolhida, aí então consigo me manter mais suave e sempre saio com a leveza de quem contribuiu da melhor forma.

Chega de tanto estardalhaço. Só preciso entender que meu espaço pra explosão é escrever, e ninguém é obrigado a ler, e eu me torno mais leve assim. Simples.

terça-feira, maio 01, 2007

Crônicas de vôos e soluços no escuro

"Para amar o abismo é preciso ter asas. Para se ter asas é preciso amar. Para amar precisa-se conhecer o abismo."
Nietzsche

Eu, que me julgava tão alada, senti medo de um abismozinho de nada. Há muito se cristalizara em mim a sensação de que eu poderia viver de peito aberto em qualquer mundo deste planeta. Recentemente, soube de certeza que, com meu coração encontrado, território estranho não é suficiente pra eu me perder.

Mas veio o baque. Mergulhando no abismo, confirmei minhas asas, mas me descobri com medo do escuro. Tão segura de mim, orgulhosa dos meus vôos, roguei por asas maiores e mais fortes, me esquecendo de pedir para que houvesse luz. E eu chorei feito criança. Ah, Pai... esse foi o espinho que plantastes na minha carne. Pra eu não me ensoberbecer.

O meu entusiasmo sucumbiu às sombrias reações dos que me amam. Sim, me amam, e talvez por isso mesmo às vezes me façam tão mal. Sempre me chamou a atenção a passagem do Evangelho em que Jesus revela seu destino a Pedro. O discípulo, com sincera indignação, inconsolável, promete protegê-lo. Ao que Jesus responde: “Afasta-te de mim, Satanás”.

Às vezes me considero mais condescendente com os maus sentimentos. É como se o mal aprisionasse uma bondade guerreira que sempre acaba por explodir em liberdade, salpicando o Universo de beleza. Se nos admitirmos pecadores, eternamente buscaremos a perfeição. Mas ai dos que se julgam puros e donos de bons sentimentos que me provocam calafrios. O grande amor de Pedro seria capaz de proteger Jesus de seu destino maior, de tornar-se o Cristo. Afasta-te de mim, Satanás...

Escrevo para não esquecer. Preciso apagar de vez em mim o que ainda resta de expectativa em relação aos outros e necessidade de compreensão. Carrego o amor incondicional de quem conheceu o abismo - sem apegos e sem julgamentos - e isso basta para seguir em frente, com um sorriso sereno nos lábios e uma paz outra vez inabalável no peito.

quarta-feira, abril 11, 2007

Febril

Minha febre já completa um mês. Baixa como sempre, oscilando entre 36.9 e 37.1, quase imperceptível, mas presente o tempo inteiro. Ontem fui no meu homeopata, já que o especialista do mês passado, os 10 dias de antibiótico e o uso de paracetamol não alteraram o quadro.

O homeopata também não soube dizer muita coisa. Solicitou exames, pediu que eu evitasse doces e me pareceu intrigado. Mas eu já não estranho. Estar febril virou rotina.

De leis da física e cenas de cinema

A Lei da Inércia é um engodo. Todo corpo tende ao repouso, mas tudo ao redor se movimenta. O repouso é uma falsa tendência do meu corpo, que vive do impulso de não perder momentos.

Na minha vida hão de caber todas as minhas inquietações. A idéia de que o tempo passa rápido não pode encontrar espaço. Lembrei das aulas de cinema: 24 quadros por segundo, velocidade normal. Pra câmera rápida, menos quadros por segundo. Câmera lenta, mais quadros. Não, não troquei as bolas. Quanto menos detalhes, mais rápido o fim de seja lá o que for.

Os dias acontecem no ritmo dessas cenas que resolvo encaixar em cada um deles. Tantos detalhes de sonho, decepção, cansaço, esperança e sentido em poucas horas que uma existência inteira cabe em 24 delas. Um dia, 24 horas: eis a convenção, o que não tem jeito. Um segundo, 24 quadros. Esse é o normal. Aprendo, então, a burlar o que parecia inalterável. Não engano o tempo pedindo mais horas no meu dia. A mim, me basta viver muitas vidas por segundo.

segunda-feira, março 26, 2007

Promessas pra Santa Teresa

Subi. Depois... cadê a vontade de descer?

Fui de bonde até o Largo dos Guimarães, onde encontrei o Paulo. Almoçamos no Mineiro uma carne-seca com purê de abóbora, couve, arroz e feijão. No capricho, honrando a tradição do restaurante. Duas doses de cachaça pra acompanhar, pra comemorar.

De lá, partimos pra nova casa, onde conversamos. Com aquele vento gostoso que entra o dia inteiro pelos janelões, com aquela vista pro Rio de Janeiro que há muito eu não via tão mágico.

Mais um pouquinho e descemos até o vizinho Léo, pra prosear e tomar o cafezinho que ainda não podemos fazer por falta de cafeteira, por falta de fogão. A geladeira, o som, o sofá e a mesa da sala o Paulo já providenciou. Ele está feliz da vida de já poder ter alguém pra quem cozinhar. Ah, ele adora cozinhar... Faz uns quitutes árabes que valem algumas cuecas lavadas em troca.

O papo animado na casa do Léo, som do pandeiro que o anfitrião aprendeu a tocar com a Dona Patroa, bela Clarice, percussionista das boas, que toca ali pertinho, onde Santa acaba e a Lapa começa.

Depois voltamos lá pra casa, o Léo junto, e tomamos cerveja nós três. Não fosse o compromisso de encontrar o pessoal do Caroço no Largo do Machado, eu nem tinha voltado pra dormir em Niterói.

Pensei no Luquinhas o tempo inteiro enquanto perambulava pelas ruas do meu novo bairro. Será que ele vai gostar de andar no bonde daqui? Ah, se depender de mim, ele vai crescer achando o Rio mágico.

terça-feira, março 13, 2007

Quem diria digo eu

Apesar da minha tentativa de forçar um resultado igual ao da Déia, parece que Paris é meu lugar.




You Belong in Paris



You enjoy all that life has to offer, and you can appreciate the fine tastes and sites of Paris.

You're the perfect person to wander the streets of Paris aimlessly, enjoying architecture and a crepe.

sexta-feira, março 02, 2007

Dia de festa

(e-mail enviado por mim no dia 22 de fevereiro)

Olá, amigos queridos.
No próximo dia 28 meu pai completa 61 anos. Há um tempinho comento com alguns de vcs que gostaria de fazer algo na minha casa pra criar uma aproximação dos meus amigos com o seu Artur. Acho que a oportunidade é boa. Só tem uma questão: seu Artur foge de festas, ainda mais se for a do próprio aniversário. A Dani já esperneou muito nessa vida por causa do jeito bicho-do-mato do nosso pai. Mas acho que encontrei uma solução divertida: fazer uma festa em homenagem ao seu Artur, mesmo que ele não participe.

Há dois dias, disse que daria uma festa e ele me respondeu que, então, sairia de casa para um retiro espiritual. Me pareceu sublime. Minha comemoração será um estímulo para orações. Além disso, decidi instituir a santidade do dia 28 de fevereiro, quando, a partir deste ano, celebrarei a vida de quem me criou e me ensinou tanto, mesmo quando não era a intenção, mesmo quando aprendi pelo avesso, sendo contrária ao que ele queria me ensinar.

Usando as palavras da Déia, esta é quase uma forma de vencer a morte. Daqui a muitos anos, quando o meu pai não estiver mais aqui, continuarei comemorando e nem vou sentir diferença. A ausência é uma das formas mais bonitas de presença, sempre achei...

Ele riu com a minha conclusão e me lembrou que isso é precisamente o que fazemos na tradição cristã. Em nome do Cristo "ausente" várias pessoas se reúnem, em tantos cantos desse mundo. Talvez este tenha sido o maior milagre: perpetuar o encontro. Então, como Jesus mesmo disse que faríamos obras maiores que as Dele, acho que não faz mal algum tranformar o dia do seu Artur num dia de encontro, celebração da amizade e de comunhão.

Depois dessa, vou querer também festejar os aniversários atrasados de fevereiro: da Dani (dia 1), que mora em Amsterdã, e da Déia (dia 8), que vive em Londres. Pode ser num sábado desses aí. Mas o do seu Artur eu faço questão que seja no dia 28.

Me digam o que acham.
Abraços,
Gi

PS - Questões práticas: vou fazer o bolo e as várias pizzas. Tragam a bebida. Pensei em marcar às 20hs.

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Do cio de existir

A pequena morte
“Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu vôo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer é uma alegria que dói. Pequena Morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena Morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce”. (Eduardo Galeano)


Nascer é uma alegria que dói. Remédio bom tem gosto ruim. Pra eletrizar é preciso muito atrito. Sexo bom faz cansar. Todo corpo tende ao repouso, mas a gente sempre se levanta. “Viver é muito perigoso”, diz compadre meu Riobaldo.

Às vezes acho que dei adeus demais. Mudei de escola sete vezes, já abandonei uma faculdade, sou filha de pais separados, não conheci os avós paternos, não lembro do avô materno. A única avó com quem pouco convivi era amarga demais pra me mimar e morreu de câncer quando eu tinha nove anos. Chorei de amor pela primeira vez aos 11, passei adolescência longe de mãe, morei no Oriente Médio, viajei por oito países, perdi irmã, sobrinho e melhor amiga pro Velho Continente. Mais de uma vez tive dois trabalhos, sempre ganhei mal, fiquei quatro anos sem férias e só descansei desempregada. Golpe de vida meu peito sempre agüenta.

Já dei exemplos do princípio da realidade dinâmica. Por causa dessa lei, deixei contos por terminar, amores ficaram pelo caminho, amizades pela metade. Eu me forço ao repouso, mas tudo ao redor se movimenta. 2007 ainda é fevereiro e já tive salário atrasado, cumpri um aviso prévio, comecei no meu novo emprego, tive quatro paixões espirituais platônicas, comprei três pares de sapato, fiz duas viagens, me relacionei de lampejo no plano físico com quatro caras – e nem era Carnaval. Conheci muita, muita gente bacana.

Eu morreria tranqüila, mas tenho muitas dívidas. Voltei pra dança e continuo na ioga, consegui meu certificado do IELTS, tenho ido ao cinema com freqüência e cuidado dos meus amigos. Quero montar uma bandinha de rock pra ser vocalista, fazer mestrado, aprender francês e holandês, escrever um livro.

Deus, me dê mais de uma existência.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Por um espírito verde

Há um animal aqui. De repente me dei conta de que está grande, quase um monstro. Antes o crescimento era tímido, mas o tempo passou e já não suporto seu peso que me sufoca, seus dentes e unhas que me comem por dentro, me rasgam.

Nada disso. O monstro sou eu. Porque aprisiono o animal, porque o sufoco aqui dentro de mim, porque não o liberto. Porque atrofio suas unhas e dentes.

Que meu espírito seja corrosivo, faça buracos nesta carne podre e saia para fora, para uma liberdade que ainda desconheço. Porque só assim os frutos maduros que guardo aqui dentro poderão ser comidos, e então me tornarei mais leve e mais vazia, e pronta para me encher de um novo espírito, verde e criança.

sábado, janeiro 20, 2007

Playing the angel

Sometimes I try
Sometimes I lie, with you
Sometimes I cry
Sometimes I die, it's true

How to disappear completely - 2

Tem dias assim: em que toda a minha onipotência é desmentida feito barata esmagada por pé de criança. Me repito sempre, por mesmo acreditar, que vantagem minha é estar morta, e viver de vagar por aqui, só achando graça das coisas. Mas, vez e outra, essa dormência de não existir me dói.

terça-feira, janeiro 16, 2007

Tudo sobre minha calcinha preta

A Beca me ligou ontem às dez da noite. Disse que eu estava sumida, tal, mas não fez muito rodeio e mandou:

— Gi, você esqueceu uma calcinha preta aqui?

Resposta afirmativa. Ela pediu detalhes:

— Mas como é exatamente a calcinha?

E eu descrevi.

— Pois esse filho da puta aqui do meu lado escapou de morrer agora. A sorte foi que ele me lembrou que você ficou com o apartamento no Ano Novo, quando estávamos em Salvador.

Tivemos uma crise de riso.

Mas a história está longe de acabar por aí. Alguns dados: a Beca é a namorada do Dés, que me emprestou seu apartamento em Ipanema para o Réveillon. O Dés e eu namoramos durante um ano e meio, de agosto de 2002 a janeiro de 2004. Mais que amantes, fomos grandes amigos. Parceiros. Cúmplices. Mas, quando decidimos que não seríamos mais um casal, não teve jeito de salvar amizade, parceria ou cumplicidade. Tudo irremediavelmente perdido, parecia, até que, quase dois anos depois, bati à sua porta. Era o Natal de 2005, eu havia acabado de dar de cara com o meu último amor, num bar na Praça Nossa Senhora da Paz, que estava acompanhado. Naquele momento, pensei que somente um reencontro com o meu passado me livraria de um doloroso desespero. E eu não me enganei...

Quando o reencontrei, vi encarnadas as respostas pra tantas das minhas perguntas. Os questionamentos se tornaram desnecessários e eu me compreendi. Revê-lo me proporcionou instantâneas lições que, hoje, guardo no bolso, no peito e em todos os cantos de mim. Como eu escrevi dias depois que tudo aconteceu:

"Naquela hora e meia, tudo fez sentido. Eu, que nunca entendi por que a gente ama tanto pra acabar, compreendi finalmente que algumas reações de amor, desencadeadas, explodem no infinito, pra salpicar o universo. Ejaculação de um aparente caos que engravida o cosmo e gera beleza. Porque 'a beleza salvará o mundo'.
(...)
Durante aquela conversa de portaria, fez muito sentido amar. Não para se ter algo, mas para engravidar o mundo de beleza. Eu senti muito orgulho porque um dia dediquei tanto amor a um cara tão bacana. Simples assim."


A amizade foi resgatada, de uma maneira — me atrevo a dizer! — ainda mais bonita. Passamos juntos o Reveillon de 2005, na festa em que conheci muitos de seus novos amigos, que só dois meses depois souberam do nosso namoro no passado. Combinamos assim. Não fazia sentido me apresentar como ex, com um rótulo desses. Amiga e pronto, e sempre. Seus novos amigos (que não eram da “minha época”) me acolheram, entre eles a Beca. E passaram a me convidar para todos os programas. Dois meses depois, quando resolvemos contar o “detalhe” (para evitar uma futura confusão, porque a Beca se apaixonara pelo Dés, o Dés por ela, e o primo dela por mim), até que levaram um susto, mas aí já não importava mais. Em pouco meses o Dés estava namorando com a Beca, e ela já gostava tanto de mim, e eu dela, que não nada podia mudar isso.

Obviamente que muita gente mal consegue disfarçar o espanto . “Você pegou a chave do apartamento do ex? Mas e a namorada dele? Não fala nada? Vocês são amigas? Que gente mais moderna...”. Quando cheguei de viagem, em novembro, os dois me convidaram para um almoço no meu primeiro final de semana aqui. Outros amigos do Dés estavam presentes — desta vez os antigos, os da “minha época”. As pessoas se entreolhavam muito, flagrei tantos cochichos que, então, resolvemos nos pronunciar, a Beca e eu: “É, a gente se gosta”.

Na verdade, tem uma parte nisso tudo que não me agrada: a Beca acabou com uma das minhas diversões favoritas, que era falar mal das atuais dos ex-namorados, ou das ex-namoradas dos atuais. Porque a Beca, além de ser doce, sensível, amiga, falar com um sotaque baiano muito do charmoso, ser atriz e também cantar de um jeito lindo, ainda tem um metro e oitenta e é belíssima.

Pois então. Depois de ter passado quatro noites no apartamento emprestado, minha calcinha preta, esquecida no varal no dia 2 de janeiro, foi parar na gaveta da Beca. Quando ela viu, acordou o Dés aos sacolejos, pedindo satisfações. Mas, afinal, tudo se resolveu: a calcinha era da ex.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Guimarães e amores, insônia e incenso

Já em casa (sem sono, pra variar). Papo de madrugada com a Santa Helô no msn sobre Grande Sertão: Veredas. Acabei pegando o livro e relendo grifos antigos.

"Comigo, as coisas não têm hoje e ant'ôntem amanhã: é sempre. Tormentos.
(...) relembrando minha vida para trás, eu gosto de todos, só curtindo desprezo e desgosto é por minha mesma antiga pessoa".

Não é à toa que os homens da minha vida sejam todos santos. Faz tempo que não me sobra tempo para condená-los. Quase uma santa... É que eu percebi que autoflagelo é mais produtivo. Faz andar.

Estou lembrando de outro papo (não mais com a Helô). Ele me disse que eu fui suicida, que não lutei por meus amores. Mas eu olho daqui os meus amores e me prefiro sem eles, sem a parte que os amou. Aquela que foi carcomida, que apodreceu, que também morreu.

Preciso dormir. Faz dias que não tomo café, mas meu organismo anda muito distraído e ainda não se deu conta disso.

Em tempo: terceira noite de "incensada" na redação. E o Rio de Janeiro continua uma Varsóvia de tranqüilidade... Os incensos estão virando lenda. Pedidos já para que sejam acendidos todas as noites.

terça-feira, janeiro 09, 2007

Solange Frazão da Índia

Primeira aula de ioga do ano. Muitos exercícios de purificação, limpeza dos chacras, vibrações de lam, vam, ram, ham... Relaxamento, respiração e muita concentração. Na aula de 14h45, eu era a única aluna, então tive aquela atenção especial da professora, que, no final, ainda me vendeu uns incensos muito bons: de cereja e gengibre (paz, equilíbrio e força interior) e de flor de pitanga (vitalidade, prazer e afeição). Saí da aula e passei no Mundo Verde, que fica bem em frente.

Estou falando tudo isso porque recebi um e-mail da Déia ontem. Ela me dizia:

"Não gosto qd vc exagera no estilo zen: qd so sabe falar de Aloe Vera e meditação. Tudo bem, eh legal se cuidar, mas dar uma de Solange Frazão da Índia não dá".

A crítica fazia parte de um jogo que propus ontem. A brincadeira consiste em cada uma falar tudo o que incomoda na outra.

Pois eu respondi:

"Sobre meu estilo zen, não acho que exagere nele de modo específico. Sou obcecada com muitas coisas e minhas 'novidades' sempre me tornam repetitiva, porque eu me empolgo e não páro de falar delas. Pra ficar mais gatinha, eu precisaria calar minha boca, de um modo geral.
(...)
Você é muito mandona."


Autocrítica também é fundamental.

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Resta Um
Mais uma demissão em massa no jornal. Só na minha editoria, cortaram mais 4 cabeças (um outro cara, que entrou comigo, já tinha ido embora antes do Natal).

Quando deu meia-noite, acendi o incenso de flor de pitanga na redação, com a aprovação dos "coleguinhas" (eu tenho pavor dessa expressão). Uma purificada no ambiente caía bem. A repórter de cidade, que tava na escuta hoje, pediu um só pra ela, pra ficar do lado do rádio com a freqüência da polícia.

Fomos embora à uma da manhã. O Rio de Janeiro estava quase uma Varsóvia de tão tranqüilo. Ou a energização foi boa, ou o Cabral tá amedrontando a rapeize mesmo...

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Samurai-Zen
A ilustração acima é do Dés. O Goiaba, além de morar em Ipanema, comer ração de salmão e gozar com Radiohead, ainda tem pai artista.

Quem quiser ver mais ilustrações do Dés, pode visitar a Renderia. Como ele bem definiu, é "um puxadinho de idéias". Espero que tome vergonha na cara e faça logo o site. Material tem. Ô.

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Goiaba



Na hora de definir uma legenda, me valho da sabedoria jornalística. Se fosse pobre, eu diria que é um meliante, tarado, psicopata. Mas como mora em Ipanema e come ração de salmão, é sensível e artista.

Cadê a cadeira que tava aqui? O gato comeu!

Uma fábula. O Dés viajou pra Salvador com a Beca e, gentilmente, deixou a chave do ap em Ipanema comigo, me salvando do que seria a grande furada do Réveillon: tentar voltar pra Niterói depois do plantão que terminava às 23hs.

Foram quatro dias, só eu e o Goiaba, o gato do Dés. Cheguei na sexta-feira 30. O bicho miava tanto que, depois de checar água, ração e terra 74 vezes, saí correndo do ap, me sentindo um fracasso como mãe de gato zona sul, e fui me encontrar com a Dê, o Di, o Bob e o Pedro, que estavam por ali, no Banana Jack.

Cervejas, conversas, teorias, divagações. Depois pizza, mar à noite, mais conversas, teorias e divagações, com brincadeira de chutar areia da praia. Adiamentos do meu reencontro com o gato.

Depois de miados estridentes durante duas madrugadas - sexta pra sábado e sábado pra domingo - acho que ele relaxou. De verdade. Porque na manhã de domingo, assistindo pela trolhogésima vez o clipe de Let Down, comecei a fazer carinho na barriga do Goiaba, que foi se arreganhando. Música rolando, reparo nos movimentos pélvicos do bichano, vejo aquela coisa vermelha ficando mais saliente, depois um troço branco na ponta da coisa vermelha. E, juro, juro, no último acorde, a gotinha cai na cadeira do computador. O Goiaba, de uma sensibilidade muuuuuuuuito maior que a minha, gozou com Radiohead. Gato de bom gosto e muito estáile esse...

terça-feira, janeiro 02, 2007

Desejo e sonho de sobra pra transformar ímpar em par

Naquele fim-de-ano de 2005 pra 2006, descobri que eu não era a única a ter expectativas em relação aos anos pares e receio quanto aos ímpares. A Déia e o Dés me contaram: depois de pararem pra fazer um balanço dos anos vividos, como eu eles constataram que os pares ganhavam em realizações, surpresas e momentos inesquecíveis.

2006 foi ano de autodescobertas importantes, de sujeiras cansadas da cobertura dos tapetes; de recolhimento mas também de aventuras. De receios que serviram para encorajar. Tempo de peito aberto pra vida, mas também de um olhar pra dentro. Inconstâncias e equilíbrios, estréias e mesmices. Amor nenhum e amores de sempre, amizades novas com cara de velhas, amigos antigos redescobertos, renovados, ressignificados e reinterpretados. Viagens, muitas viagens.

O último dia de 2006 foi um 31 de plantão no jornal até às 23h, de tensão pelos alertas da escuta na redação. Não confirmados carros queimados, comércios fechados e morros a serem invadidos. Sim, repórteres e fuzis. Rio de Janeiro de festas, de fogos e dos infernos. Mas também houve noite de luz em Ipanema, abraços antigos mais apertados, olhos de sempre nunca tão vistos, conversas repetidas para ouvidos transformados, mesmas teorias contadas com risos inéditos. Bocas misturadas, embebidas em beijos e vinhos.

Apelando pros salvadores clichês: 2006 vai entrar pra história. Resta agora fazer de 2007 um ano par. Pra isso, há desejo e sonho de sobra.