sábado, novembro 25, 2006

Sou um animal sentimental (no cio)

Do princípio da realidade dinâmica: há um mês atrás comentava com a Déia, em Londres, as preocupações (profissionais) em relação à minha chegada ao Brasil. Segunda-feira passada, vivi o meu primeiro dia de trabalho na redação de um grande jornal carioca.

Ontem pela manhã, ainda em casa, chorei. Pensei no Lucas, em Amsterdã, nas tantas vezes que ele me pediu colo e quis brincar com o “cacaco” (se referindo a um CD interativo do “Mico Maneco”, da Ana Maria Machado) e eu ocupei o computador com preocupações, mandando e-mails, estabelecendo contatos, pra conseguir um porto seguro quando voltasse para o Brasil.

Choro de susto, por constatar uma dor que pouquíssimas vezes (e agora não me vem um exemplozinho sequer) se materializou na minha alma: arrependimento. Dor do não vivido, parando pra pensar, sempre foi algo estranho à minha natureza. Agora essa... eu, que sempre me repito a existência apenas do presente, da vida aqui, do “mundo bem diante do nariz”, eu, um grande arroto de frases feitas e fáceis, deixei de aproveitar abraços e sorrisos que me apareceram. Tudo por dúvidas que, no tempo certo, se dissiparam. Eu, tão jovem, ainda não aprendi a dar ouvidos de verdade àquele velho moribundo que vez e outra fala comigo, aquele sábio senhor que tantas vezes me aconselhou a colher o presente com as mãos enquanto o porvir espera por seu tempo de maturação.

O Lucas é, certamente, dos exemplos o mais dolorido. Mas eu também ocupei aquele sofá em Paris com minhas incertezas, chorando no colo do Gui. Ele, que acumulou tantas perdas no seu breve caminho de 29 anos, que aos 14 viu a mãe morrer na piscina da própria casa, que aos 20 perdeu o pai pro câncer, ele nunca parecia entender minha gravidade. E eu desdenhava da descompreensão com uma justificativa fácil: “Ele é francês”.

Comecei a sexta-feira, então, me prometendo vida desde já. Nada de planos para o próximo ano, ou para segunda-feira, ou amanhã. Lembrei das palavras da Lu sobre a virgindade dos nossos dias, de cada um deles, e resolvi profanar o último da minha semana com o gozo da fé no agora. Deu certo. Pensei em don Miguel:

“Nossa filosofia, isto é, nosso modo de compreender ou de não compreender o mundo e a vida brota de nosso sentimento com respeito à própria vida (…)

Não são nossas idéias que costumam nos tornar otimistas ou pessimistas, mas sim nosso otimismo ou nosso pessimismo – de origem fisiológica ou talvez patológica, tanto um como o outro – que fazem nossas idéias.

O homem, dizem, é um animal racional. Não sei por que não se disse que é um animal afetivo ou sentimental. Talvez, o que o diferencie dos outros animais seja muito mais o sentimento do que a razão. Vi mais vezes um gato raciocinar do que rir ou chorar. Talvez chore ou ria por dentro, mas por dentro talvez também o caranguejo resolva equações de segundo grau”.

(Miguel de Unamuno, Do sentimento trágico da vida)

Eu, nascida animal sentimental, com as idéias doentiamente afetadas pelo meu otimismo, saí do jornal a uma da manhã, como tem que ser, e dormi feliz com a idéia de desvirginar o dia seguinte, que já havia começado.

quinta-feira, novembro 23, 2006

Santa Helô



Ando encantada com mulheres. Aproveito pra falar da Helô, com quem passei a tarde do último domingo. Comentei, certa hora, a respeito da minha sempre crescente vontade de recolhimento pra gestar meus sonhos, e gestar é uma boa palavra, porque gestar é verbo que deriva na certeza de nascimento, necessitando, pra se fazer carne, apenas de espera. E eu optei por uma espera silenciosa.

A Helô, que concorda comigo, me disse que três dos nossos sete chakras principais se localizam assim, mais ou menos, no peito, na garganta e na cabeça. A energia dos nossos sonhos teria lugar no peito e, para se transformar em concretudes, deveria ser canalizada pra cabeça. O problema é que, antes, nossos sonhos passam pela garganta, encontram a bifurcação da fala, e então, muitas das vezes, assim se dissipam.

Decidido: não cuspo mais meus sonhos.

terça-feira, novembro 21, 2006

Da estrela Clarice e a hora das minhas santas profanas

"Esse eu que é vós pois não agüento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter de pé, tão tonto que sou, eu enviesado, enfim que é que se há de fazer senão meditar para cair naquele vazio pleno que só se atinge com a meditação. Meditar não precisa de ter resultados: a meditação pode ter como fim apenas ela mesma. Eu medito sem palavras e sobre o nada. O que me atrapalha a vida é escrever. E - e não esquecer que a estrutura do átomo não é vista mas sabe-se dela. Sei de muita coisa que não vi. E vós também. Não se pode dar uma prova da existência do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar. Acreditar chorando."

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"Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho".

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Mais fragmentos de Clarice, dessa vez de A hora da estrela, que ainda não li todo. Recebi o livro por e-mail ontem, como presente virtual da Déia, que me escreveu:

"Estou assustada, no mais positivo sentido. Fiz download de Clarice naquele site e parece q estou lendo você. Lindo!
Beijos!"

Lindo que a Déia me veja assim. Muitas coisas eu sei de sentir antes de ler em quem sabiamente as escreveu. Não é assim sempre? Porque está dito. O espanto de identificação acontecera antes, com Miguel de Unamuno e Schopenhauer ultimamente, mas tantos outros antes. Tal sentimento não me pesa como vaidade, porque nasce de uma grande humildade. Quanto mais entendo que é tudo uma coisa só, mais muitas são as vozes que falam por minha mesma boca, ou falo por uso de outras bocas e vozes, porque minhas e outras dá no mesmo, inexistem iguais.

E que não me acusem de negar o colorido das diferenças, porque o nosso planeta, de tantas diferentes geometrias e formas de vida, cores e dores, no fim das contas é redondo e azul. E agora me lembro das feiras de ciências na escola, e de uma experiência: um disco de papel, ou papelão, pintado com duas ou três cores diferentes, colocado num suporte mecânico que o fizesse girar, resultava num disco de uma cor outra e única, revelada a partir da mistura, da velocidade. Daí nascem, da visita do homem à lua e da experiência dos tempos da meninice, nascem dois ensinamentos: algumas compreensões somente são possíveis com certas doses de distância e movimento.

domingo, novembro 19, 2006

Clarice, Clarice, Clarice

“por eu ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar o abismo de que sou feita”.

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“Pois o estado de graça existe permanentemente: nós estamos sempre salvos. Todo o mundo está em estado de graça. A pessoa só é fulminada pela doçura quando percebe que está em graça, sentir que se está em graça é que é o dom, e poucos se arriscam a conhecer isso em si. Mas não há perigo de perdição, agora eu sei: o estado de graça é inerente”.

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“Eu estava habituada somente a transcender. Esperança para mim era adiamento. Eu nunca havia deixado minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa porque é arriscado demais perder-se a forma. Mas vejo agora o que na verdade me acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia inventado apenas o futuro, eu acreditava tão pouco no que existe que adiava a atualidade para uma promessa e para um futuro”.

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"Mas ouve um instante: não estou falando do futuro, estou falando de uma atualidade permanete. E isto quer dizer que a esperança não existe porque ela não é mais um futuro adiado, é hoje. Porque o Deus não promete. Ele é muito maior que isso: Ele é, e nunca pára de ser. Somos nós que não agüentamos esta luz sempre atual, e então a prometemos para depois, somente para não senti-la hoje mesmo e já. O presente é a face hoje do Deus. O horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos Deus. É com os olhos abertos mesmo que vemos Deus. E se adio a face da realidade para depois de minha morte - é por astúcia, porque prefiro estar morta na hora de vê-Lo e assim penso que não O verei realmente, assim como só tenho coragem de verdadeiramente sonhar quando estou dormindo".

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"É medo. Pois prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas a me prometer vida. E este é o maior susto que eu posso ter. Antes eu esperava. Mas o Deus é hoje: seu reino já começou".

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"E eis que eu estava sabendo que a promessa divina de vida já está se cumprindo, e que sempre se cumpriu. Anteriormente, só de vez em quando, eu era lembrada, numa visão instantânea e logo afastada, de que a promessa não é somente para o futuro, é ontem e é permanentemente hoje: mas isso me era chocante. Eu preferia continuar pedindo, sem ter a coragem de já ter".

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"Eu não quero mais o movimento completado que na verdade nunca se completa, e nós é que por desejo completamos; não quero mais usufruir da facilidade de gostar de uma coisa só porque, estando ela aparentemente completada, não me assusta mais, e então é falsamente minha - eu, devoradora que era das belezas".

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"Entendi então que, de qualquer modo, viver é uma grande bondade para com os outros. Basta viver, e por si mesmo isto resulta na grande bondade. Quem vive totalmente está vivendo para os outros, quem vive a própria largueza está fazendo uma dádiva, mesmo que sua vida se passe dentro da incomunicabildiade de uma cela. Viver é dádiva tão grande que milhares de pessoas se beneficiam com cada vida vivida".

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"E solidão é não precisar. Não precisar deixa um homem muito só, todo só. Ah, precisar não isola a pessoa, a coisa precisa da coisa: basta ver o pinto andando para ver que seu destino será aquilo que a carência fizer dele, seu destino é juntar-se como gotas de mercúrio a outras gotas de mercúrio, mesmo que, como cada gota de mercúrio, ele tenha em si próprio uma existência toda completa e redonda".



(Fragmentos de Clarice, em A paixão segundo G.H.)

sexta-feira, novembro 17, 2006

Na chuva com Van Gogh

Inaugurando imagens metanóicas.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Marias, Claras e Clarices

Ele é um cara bacana... mais que isso, muito mais, digo bacana só porque me prometi que hoje não vou escrever muito. Então, ele, que é mais que bacana, que é supimpa (pra usar essa que é das favoritas entre minhas gírias idosas ), ele disse que um dia vou ser mãe de uma menina chamada Maria Clara, e eu, que nunca havia pensado num nome de mulher, gostei desse. Com o primeiro namoro, ainda adolescente, vieram planos de casamento, família, filhos, todos aqueles sonhos mais fáceis de desejar (qual é a diferença entre sonho e desejo, assim, no aspecto semântico da vontade de realizar?) na adolescência, quando a possibilidade de concretização não dá medo precisamente porque distante. Pois então, filhos. No singular, na verdade. Apenas um, e macho! Escolhia nomes, Mateus no topo da lista, depois João. Eu e minha mania de santos, de anjos, porque o João bem que podia ser também Gabriel. Engraçado que isso mudou faz pouco tempo... não a mania de santos, ou anjos, não isso propriamente, mas a mania de macho. Vai ver antes não queria uma menina porque eu achava muito difícil lidar comigo mesma, porque na adolescência era mais fácil sonhar, desejar, como queira, mas não era fácil conviver com a minha intensidade, a minha angústia, a minha impulsividade, a minha bunda maior que a de todas as meninas da minha idade, maior que a das mais velhas também. Agora que não sou mais adolescente, que acho mais fácil conviver com os meus dramas e nádegas, curto a idéia de substituir os sagrados santos e anjos por uma bundudinha desse mundo, profana, no sentido sociológico do termo. Maria Clara... Ou só Clara, porque meu pai, que sabe da vida de todos os santos, e santas, ele hoje veio me dizer que Clara de Assis era parceirona de Francisco, primeira seguidora dele, e eu gostei, achei o nome forte, e eu nunca havia reparado direito, ou parado pra escutar, e repetir, Clara, Clara, Clara. Lembrei que sempre quando tenho medo de alguma coisa não dar certo eu penso que preciso ter calma, porque a vida não é tão grave assim, e que se der tudo errado, considerando os conceitos que as pessoas têm do certo e do errado, que se tudo der em nada, considerando o pavor que as pessoas têm do nada, do vazio que se parar pra pensar é bacana porque dá pra preencher de várias formas e nadas, se tudo for um grande eterno impreenchível, e se impreenchível for realmente ruim, então eu me torno alguém menos desse mundo, menos profana, no sentido sociológico do termo, e viro irmã franciscana. Na verdade eu roubei essa idéia da Déia, assim, com rima feia e tudo, mas agora acho que a idéia é minha, idéia que eu relaciono com aquelas palavras da Clarice, a Lispector, Clarice, Clarice, Clarice, Clara, Clara, Clara... aquelas palavras, que “a desistência é uma revelação”, que “solidão é não precisar”. Recolhimento por não precisar, antes de tudo, ou de mais nada, não precisar de tudo, nem de nada.

domingo, novembro 12, 2006

Eu perdi o meu medo, meu medo da chuva

Naquela manhã em que, de mochila nas costas e adeus nas mãos, orientei meus passos rumo ao aeroporto de Schiphol, de onde partiria com destino a Guarulhos, os cinco graus centígrados no termômetro me pareceram uma mística despedida. Desde minha chegada à Europa, três meses antes, cada cidade visitada me recebera com sol: Londres, Amsterdã, Paris, Porto, Amsterdã outra vez, Bruxelas, Paris novamente, Londres ainda, Amsterdã por fim. Dias chuvosos eram véspera da minha chegada ensolarada. A gente aprende a acreditar em uns mistérios bobos pra deixar a vida mais bonita... e nessa, o mundo acaba ganhando cor de verdade.

Os últimos dias na preferida Amsterdã foram de temperatura que oscilava entre 11 e 15 graus. O outubro mais quente em trezentos anos, disseram os noticiários. A minha alma brasileira, tão acostumada com o Rio de Janeiro, não se abalou com os oito graus da véspera da partida e a linda chuva de pedacinhos de gelo (da qual nos protegemos, Dani e eu, no café de Nieuwmarkt). “Eu perdi o meu medo, o meu medo da chuva”... e aprendi a ver beleza nela.

Quem reclama dessa garoa de ultimamente, agora, aqui, no Rio de Janeiro, não desconfia do bem que ela me faz. Feito a passagem do livro da infância, do Pequeno Príncipe de tantos clichês: “Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...”.

A chuva rega as ainda frescas lembranças de caminhadas pelas cores de Zeedijk, de cervejas em entorpecentes esquinas, de buzinas de bicicletas misturadas com o Radiohead dos meus tímpanos, dos canais e suas flores, de pedaladas na beira dos diques, docas e campos de ovelhas e vacas.

Olho pra minha janela, o verde das árvores continua a ser banhado de recordações. Bem ali, se forma a imagem de um sorriso, de uma criança que brinca de bola no pátio molhado enquanto espera sua mãe. É uma imagem atemporal, de uma felicidade passada, presente, porvir. Por ela, vale à pena viver, vale chover.