quinta-feira, dezembro 29, 2005

Eu, por mim mesma - Tomo quinto, parte dois

"Passada a limpo em pouca quadras"

música: Goodnight Goodnight, do Hot Hot Heat

“So goodnight, goodnight.
You're embarassing me,
you're embarassing you.
So goodnight, goodnight.
Walk away from the door,
walk away from my life.”


Meu amigo retorna, senta e não faz comentários. O “último absoluto” vem logo em seguida, com a “companhia”. Passam por nós, ambos cumprimentam minha amiga, que segue com seu workshop de caixinhas, pois, ali, ela é a mestra. Ele, antes de ir para a sua mesa, mostra que é mestre na arte de pronunciar o maior número de frases desajeitadas seqüenciais no menor tempo possível.

Quando ele vira as costas, deixa um silêncio que, apesar de perturbador, não me dissuade da firme resolução de não quebrá-lo. Por fim, alguém faz isso por mim e eu, então, me sinto livre pra perguntar se o meu amigo acha que os dois estão juntos. Meu amigo, que outrora negara essa possibilidade com veemência, agora balança a cabeça afirmativamente.

Sorte que eu ainda tenho caixas para montar com as micas dobradas, porque, do contrário, não saberia para onde olhar, nem o que fazer com as mãos. Mas tanta arte-terapia não é suficiente para afastar os pensamentos todos que me vêm em velocidade esquizofrênica. Efeitos desta noite de Natal cheia de coincidências – ou milagres, ou sincronicidades. Sim, porque este bar é dos meus favoritos, mas nunca é aqui que tomo a cerveja dos domingos. Tampouco vivo a carregar uma sacola de lembranças e um coração apertado nas minhas noites natalinas – dominicais e chuvosas ou não.

O casal anuncia que precisa ir embora em 10 minutos. A amiga que deveria receber a sacola, a esta altura, já avisou que não vem. Imediatamente, tento falar, mais uma vez, com a amiga que já não ganhará DVDs piratas do Chico. Sem sucesso.

Eu, então, pego meu celular, me levanto, saio do bar e ligo para o mesmo número que liguei, pela primeira vez em quase dois anos, há poucos dias atrás. Diferentemente de antes, agora obtenho como resposta o alô tão familiar. É ele, meu ex-namorado. O “autor da frase célebre”, o meu “último relacionamento duradouro que deixou de durar”. O homem que mais amei nessa minha vida, a qual ainda há de preencher-se de tantos anos e amores.

As palavras trocadas são, mais que cordiais, engraçadas, descontraídas. Ele está em sua casa, distante dali apenas duas quadras, onde acontece uma confraternização com os amigos que tão bem conheço de outras confraternizações. Apesar do papel de anfitrião da noite, ele diz que se encontrará comigo em 40 minutos e levará alguns de seus convidados que não vejo há dois anos.

Volto para a mesa, o casal pergunta com quem eu falava. Eu respondo e, pela segunda vez na noite, recebo olhares incrédulos. Peço que esperem até que ele chegue, mas isso não é mesmo possível. Da minha mente, incapaz de assimilar os tantos pensamentos esquizofrênicos, brota uma idéia infeliz que dribla facilmente minha autocensura fragilizada e conta com os favores da minha impulsividade.

Caminho até o outro casal, composto pelo “último absoluto” e sua companhia, aviso que os que me acompanham partirão em poucos minutos e proponho, como espero outras pessoas, que eles se mudem para a minha mesa, pra que os lugares sejam marcados e os amigos que aguardo não tenham que enfrentar a fila para entrar. Ambos fazem cara de pinheiro seco e, como para o meu convite descabido parece não existir resposta sensata, eles aceitam.

Vou ao banheiro, me olho no espelho e tento calcular o tamanho do estrago causado pela dormência do meu senso de ridículo. Nessa de me olhar no espelho, vejo que meu dente da frente está verde, sujo de salsa do caldinho de feijão que tomei, e meu cabelo continua brilhando, com resquícios da purpurina que uma Drag Queen jogou em mim na festa de sexta-feira. Concluo, então, que o vexame foi maior do que eu imaginava.

É um absurdo permanecer assim. Volto à minha mesa e decido ir-me com o casal de amigos, para me encontrar com os demais em qualquer lugar que não este. Despeço-me do outro casal e, com um sorrisinho amarelo (não mais verde de salsa), comento que minha proposta foi uma idéia de jerico, afinal eles é que perderiam a mesa. Os dois pinheiros secos concordam – aliviados, provavelmente.

Com a mudança de planos e horários, meu destino é a casa do ex. Apesar das tantas pessoas queridas que celebram o Natal no apartamento dele, não subo para vê-las, porque não pretendo demorar. O abraço é forte, como tem que ser. A primeira coisa que digo é que venho em busca de um depoimento, já que estou escrevendo um livro cujo título é "Alta Fidelidade” *. Ele dá uma gargalhada e confessa que, neste Natal, também sentiu vontade de buscar depoimentos assim, inclusive o meu.

A conversa de portaria dura uma hora e meia. Do tanto que falamos, sobra agora o que contar...

Quando, por fim, nos despedimos, o relógio me mostra que falta pouco para uma da manhã. Ligo para a minha amiga que deveria ter recebido a sacola e, como ela trabalha no mesmo lugar que o “último absoluto” e a “companhia”, pergunto se o que vi horas antes, vi de fato. Ela confirma que ouviu rumores há alguns dias.

O último telefonema da noite, transformada em moça madrugada, é para minha amiga que não mais ganhará DVDs do Chico. Ela também mora por perto, a algumas quadras, e é lá que descansarei até o Natal passar de vez.

Não dormimos até que, com Chico Buarque tocando ao fundo, eu a coloque à par dos detalhes da minha crônica natalina. Talvez pela forma como conto e como vejo tudo agora, ela ri em diversos momentos. Certamente, os acontecimentos de há pouco estão longe de constituírem uma tragédia. A amiga sabiamente conclui que o destino, neste Natal, me presenteou com concisão geográfica. Minha vida passada a limpo em pouca quadras...

Já deitada na cama, insone mas tranqüila, certa de que o dia qualquer hora amanhece, penso que, mais que uma dor pra chorar, tenho uma história pra escrever.

E a história do “último absoluto” acaba assim, da maneira mais consoladora pra quem amou: sem mais o que dizer.



**************

*em menção ao filme de mesmo nome, em que o personagem principal, vivendo uma separação, vai atrás de cinco ex-namoradas para descobrir algo sobre si próprio.

Eu, por mim mesma - Tomo quinto, parte dois

"Passada a limpo em pouca quadras"

música: Goodnight Goodnight, do Hot Hot Heat

“So goodnight, goodnight.
You're embarassing me,
you're embarassing you.
So goodnight, goodnight.
Walk away from the door,
walk away from my life.”


Meu amigo retorna, senta e não faz comentários. O “último absoluto” vem logo em seguida, com a “companhia”. Passam por nós, ambos cumprimentam minha amiga, que segue com seu workshop de caixinhas, pois, ali, ela é a mestra. Ele, antes de ir para a sua mesa, mostra que é mestre na arte de pronunciar o maior número de frases desajeitadas seqüenciais no menor tempo possível.

Quando ele vira as costas, deixa um silêncio que, apesar de perturbador, não me dissuade da firme resolução de não quebrá-lo. Por fim, alguém faz isso por mim e eu, então, me sinto livre pra perguntar se o meu amigo acha que os dois estão juntos. Meu amigo, que outrora negara essa possibilidade com veemência, agora balança a cabeça afirmativamente.

Sorte que eu ainda tenho caixas para montar com as micas dobradas, porque, do contrário, não saberia para onde olhar, nem o que fazer com as mãos. Mas tanta arte-terapia não é suficiente para afastar os pensamentos todos que me vêm em velocidade esquizofrênica. Efeitos desta noite de Natal cheia de coincidências – ou milagres, ou sincronicidades. Sim, porque este bar é dos meus favoritos, mas nunca é aqui que tomo a cerveja dos domingos. Tampouco vivo a carregar uma sacola de lembranças e um coração apertado nas minhas noites natalinas – dominicais e chuvosas ou não.

O casal anuncia que precisa ir embora em 10 minutos. A amiga que deveria receber a sacola, a esta altura, já avisou que não vem. Imediatamente, tento falar, mais uma vez, com a amiga que já não ganhará DVDs piratas do Chico. Sem sucesso.

Eu, então, pego meu celular, me levanto, saio do bar e ligo para o mesmo número que liguei, pela primeira vez em quase dois anos, há poucos dias atrás. Diferentemente de antes, agora obtenho como resposta o alô tão familiar. É ele, meu ex-namorado. O “autor da frase célebre”, o meu “último relacionamento duradouro que deixou de durar”. O homem que mais amei nessa minha vida, a qual ainda há de preencher-se de tantos anos e amores.

As palavras trocadas são, mais que cordiais, engraçadas, descontraídas. Ele está em sua casa, distante dali apenas duas quadras, onde acontece uma confraternização com os amigos que tão bem conheço de outras confraternizações. Apesar do papel de anfitrião da noite, ele diz que se encontrará comigo em 40 minutos e levará alguns de seus convidados que não vejo há dois anos.

Volto para a mesa, o casal pergunta com quem eu falava. Eu respondo e, pela segunda vez na noite, recebo olhares incrédulos. Peço que esperem até que ele chegue, mas isso não é mesmo possível. Da minha mente, incapaz de assimilar os tantos pensamentos esquizofrênicos, brota uma idéia infeliz que dribla facilmente minha autocensura fragilizada e conta com os favores da minha impulsividade.

Caminho até o outro casal, composto pelo “último absoluto” e sua companhia, aviso que os que me acompanham partirão em poucos minutos e proponho, como espero outras pessoas, que eles se mudem para a minha mesa, pra que os lugares sejam marcados e os amigos que aguardo não tenham que enfrentar a fila para entrar. Ambos fazem cara de pinheiro seco e, como para o meu convite descabido parece não existir resposta sensata, eles aceitam.

Vou ao banheiro, me olho no espelho e tento calcular o tamanho do estrago causado pela dormência do meu senso de ridículo. Nessa de me olhar no espelho, vejo que meu dente da frente está verde, sujo de salsa do caldinho de feijão que tomei, e meu cabelo continua brilhando, com resquícios da purpurina que uma Drag Queen jogou em mim na festa de sexta-feira. Concluo, então, que o vexame foi maior do que eu imaginava.

É um absurdo permanecer assim. Volto à minha mesa e decido ir-me com o casal de amigos, para me encontrar com os demais em qualquer lugar que não este. Despeço-me do outro casal e, com um sorrisinho amarelo (não mais verde de salsa), comento que minha proposta foi uma idéia de jerico, afinal eles é que perderiam a mesa. Os dois pinheiros secos concordam – aliviados, provavelmente.

Com a mudança de planos e horários, meu destino é a casa do ex. Apesar das tantas pessoas queridas que celebram o Natal no apartamento dele, não subo para vê-las, porque não pretendo demorar. O abraço é forte, como tem que ser. A primeira coisa que digo é que venho em busca de um depoimento, já que estou escrevendo um livro cujo título é "Alta Fidelidade” *. Ele dá uma gargalhada e confessa que, neste Natal, também sentiu vontade de buscar depoimentos assim, inclusive o meu.

A conversa de portaria dura uma hora e meia. Do tanto que falamos, sobra agora o que contar...

Quando, por fim, nos despedimos, o relógio me mostra que falta pouco para uma da manhã. Ligo para a minha amiga que deveria ter recebido a sacola e, como ela trabalha no mesmo lugar que o “último absoluto” e a “companhia”, pergunto se o que vi horas antes, vi de fato. Ela confirma que ouviu rumores há alguns dias.

O último telefonema da noite, transformada em moça madrugada, é para minha amiga que não mais ganhará DVDs do Chico. Ela também mora por perto, a algumas quadras, e é lá que descansarei até o Natal passar de vez.

Não dormimos até que, com Chico Buarque tocando ao fundo, eu a coloque à par dos detalhes da minha crônica natalina. Talvez pela forma como conto e como vejo tudo agora, ela ri em diversos momentos. Certamente, os acontecimentos de há pouco estão longe de constituírem uma tragédia. A amiga sabiamente conclui que o destino, neste Natal, me presenteou com concisão geográfica. Minha vida passada a limpo em pouca quadras...

Já deitada na cama, insone mas tranqüila, certa de que o dia qualquer hora amanhece, penso que, mais que uma dor pra chorar, tenho uma história pra escrever.

E a história do “último absoluto” acaba assim, da maneira mais consoladora pra quem amou: sem mais o que dizer.



**************

*em menção ao filme de mesmo nome, em que o personagem principal, vivendo uma separação, vai atrás de cinco ex-namoradas para descobrir algo sobre si próprio.

terça-feira, dezembro 27, 2005

Eu, por mim mesma - Tomo quinto

"História que não pára de acontecer"

música: Jingle Jangle, do Hot Hot Heat

“another day, another night, another year
another smile, another lie, another tear
its bad enough this is all I've got
I never thought I'd end up here”



No meu caminho para a Igreja, onde haverá uma celebração de Natal, um desabafo me escapole em forma de oração: “Eu queria aprender a amar sem me perder de mim”.

Carrego um coração apertado e uma sacola que aperto entre os dedos, a qual deverá ser entregue à amiga que trabalha com o “último absoluto”. Ali dentro, objetos a serem devolvidos, porque não suporto mais escancarar lembranças todas as vezes que abro meu armário.

Há dois dias, como combinado, foram deixados com ela meus DVDs – entre os quais, o box do Chico Buarque. Pedi que ele os copiasse para outra amiga, com quem, por acaso, também me encontrarei em algumas horas. Ele não chegou a copiar, o que não chega a ser surpresa. O não-cumprimento sempre foi o destino de suas promessas.

Na igreja, tudo é tão bonito, a música, as luzes, que me dá paz. Lembro-me de Dostoiévski: “A beleza salvará o mundo”...

Ao término, vou para o bar onde, daqui a pouco, encontrarei a amiga que deverá receber a sacola. Um casal, meu amigo dos tempos de colégio e minha amiga de faculdade, me acompanha sem intenção de demora. Eles se conheceram por minha causa, começaram a namorar e, logo depois, meu amigo dos tempos de colégio me apresentou para o “último absoluto”.

Ligo para a amiga que já não ganhará DVDs piratas do Chico. Ela avisa que está em outro lugar, com um outro pessoal, mas que aparece mais tarde.

Na mesa, o casal e eu nos divertimos entre conversas, arranjos para a festa do Reveillon, chopes e caixas. Sim, porque estamos concentrados na fabricação de pequenas caixas feitas daqueles cartõezinhos publicitários dobrados – os que chamam de “mica”. A sacola permanece do meu lado, ali no chão. Meu coração torna a ficar apertado e não consigo deixar de voltar os meus olhos para a rua, para a porta do bar. Então, entre uma dobradura e outra, numa dessas insistentes espiadas, eu o vejo na fila, esperando para entrar.

Continuo o meu trabalho de construção de caixas até que, finalmente, anuncio sua chegada aos amigos da mesa, que riem imaginando se tratar de uma piada e que mal se convencem depois de constatarem que não. Sem pensar, por já não conseguir, passo a mão na sacola e vou até lá.

Ele está usando a mesma camisa da nossa primeira noite juntos. A mesma que vesti depois de ter estado despida, quando me vi cansada e feliz, no apartamento da amiga que, nesta noite de Natal, deveria receber a sacola que, agora, entregarei pessoalmente a quem por direito pertence.

Ele não está sozinho. Literalmente pula de susto quando me vê. Eu o cumprimento com dois beijos no rosto e entrego a sacola. “Que bom que não preciso mais carregar isto”, digo. Visivelmente desconcertado, me apresenta a sua companhia - que, por sinal, já conheço, mas ele não parece estar em condições de se lembrar disso. Assim como minha amiga, a “companhia” também trabalha com ele. Eu a conheci na última vez que nós dois nos encontramos, tão casualmente quanto agora, bem perto deste mesmo bar, quando tudo era mais recente do que ainda é. Naquele vinte e cinco de novembro -há exatamente um mês! - ele estava com um grupo de amigos do trabalho, do qual ela, a companhia, fazia parte; simplesmente, supostamente. Até aqui, tampouco vejo o que contrarie essa verdade, apesar do desconcerto dele, de suas palavras desencontradas, como as minhas. Apesar do bar a dois nesta noite chuvosa de Natal.

Tudo isso acontece em menos de dois minutos, eu acho. Afinal, minha noção de tempo, agora distorcida, faz com que tudo me venha como flashes: imagens, vozes, meus próprios gestos. Volto para a mesa e o deixo na fila após ter lhe dado um bom motivo (maior que a fila) para ir embora imediatamente. Meu amigo dos tempos de colégio, também amigo dele, se levanta e vai até lá.

Retomo minha tarefa de dobrar cartões para continuar a construir caixas, sem deixar de pensar que, segundo a minha mais recente teoria sobre amores contrariados, ele é a maior caixa que criei.


Continua no próximo post

****

Personagens presentes, por ordem de aparição:

Eu, por mim mesma;
Um casal: ele, meu amigo dos tempos de colégio. Ela, amiga de faculdade;
O "último absoluto";
A amiga de trabalho do "último absoluto".

Personagens citados:

Minha amiga que também trabalha com o "último absoluto", quem deveria ter recebido a sacola. Amiga minha, não dele;
Minha amiga que não mais ganhará DVDs piratas de presente.

Eu, por mim mesma - Tomo quinto

"História que não pára de acontecer"

música: Jingle Jangle, do Hot Hot Heat

“another day, another night, another year
another smile, another lie, another tear
its bad enough this is all I've got
I never thought I'd end up here”



No meu caminho para a Igreja, onde haverá uma celebração de Natal, um desabafo me escapole em forma de oração: “Eu queria aprender a amar sem me perder de mim”.

Carrego um coração apertado e uma sacola que aperto entre os dedos, a qual deverá ser entregue à amiga que trabalha com o “último absoluto”. Ali dentro, objetos a serem devolvidos, porque não suporto mais escancarar lembranças todas as vezes que abro meu armário.

Há dois dias, como combinado, foram deixados com ela meus DVDs – entre os quais, o box do Chico Buarque. Pedi que ele os copiasse para outra amiga, com quem, por acaso, também me encontrarei em algumas horas. Ele não chegou a copiar, o que não chega a ser surpresa. O não-cumprimento sempre foi o destino de suas promessas.

Na igreja, tudo é tão bonito, a música, as luzes, que me dá paz. Lembro-me de Dostoiévski: “A beleza salvará o mundo”...

Ao término, vou para o bar onde, daqui a pouco, encontrarei a amiga que deverá receber a sacola. Um casal, meu amigo dos tempos de colégio e minha amiga de faculdade, me acompanha sem intenção de demora. Eles se conheceram por minha causa, começaram a namorar e, logo depois, meu amigo dos tempos de colégio me apresentou para o “último absoluto”.

Ligo para a amiga que já não ganhará DVDs piratas do Chico. Ela avisa que está em outro lugar, com um outro pessoal, mas que aparece mais tarde.

Na mesa, o casal e eu nos divertimos entre conversas, arranjos para a festa do Reveillon, chopes e caixas. Sim, porque estamos concentrados na fabricação de pequenas caixas feitas daqueles cartõezinhos publicitários dobrados – os que chamam de “mica”. A sacola permanece do meu lado, ali no chão. Meu coração torna a ficar apertado e não consigo deixar de voltar os meus olhos para a rua, para a porta do bar. Então, entre uma dobradura e outra, numa dessas insistentes espiadas, eu o vejo na fila, esperando para entrar.

Continuo o meu trabalho de construção de caixas até que, finalmente, anuncio sua chegada aos amigos da mesa, que riem imaginando se tratar de uma piada e que mal se convencem depois de constatarem que não. Sem pensar, por já não conseguir, passo a mão na sacola e vou até lá.

Ele está usando a mesma camisa da nossa primeira noite juntos. A mesma que vesti depois de ter estado despida, quando me vi cansada e feliz, no apartamento da amiga que, nesta noite de Natal, deveria receber a sacola que, agora, entregarei pessoalmente a quem por direito pertence.

Ele não está sozinho. Literalmente pula de susto quando me vê. Eu o cumprimento com dois beijos no rosto e entrego a sacola. “Que bom que não preciso mais carregar isto”, digo. Visivelmente desconcertado, me apresenta a sua companhia - que, por sinal, já conheço, mas ele não parece estar em condições de se lembrar disso. Assim como minha amiga, a “companhia” também trabalha com ele. Eu a conheci na última vez que nós dois nos encontramos, tão casualmente quanto agora, bem perto deste mesmo bar, quando tudo era mais recente do que ainda é. Naquele vinte e cinco de novembro -há exatamente um mês! - ele estava com um grupo de amigos do trabalho, do qual ela, a companhia, fazia parte; simplesmente, supostamente. Até aqui, tampouco vejo o que contrarie essa verdade, apesar do desconcerto dele, de suas palavras desencontradas, como as minhas. Apesar do bar a dois nesta noite chuvosa de Natal.

Tudo isso acontece em menos de dois minutos, eu acho. Afinal, minha noção de tempo, agora distorcida, faz com que tudo me venha como flashes: imagens, vozes, meus próprios gestos. Volto para a mesa e o deixo na fila após ter lhe dado um bom motivo (maior que a fila) para ir embora imediatamente. Meu amigo dos tempos de colégio, também amigo dele, se levanta e vai até lá.

Retomo minha tarefa de dobrar cartões para continuar a construir caixas, sem deixar de pensar que, segundo a minha mais recente teoria sobre amores contrariados, ele é a maior caixa que criei.


Continua no próximo post

****

Personagens presentes, por ordem de aparição:

Eu, por mim mesma;
Um casal: ele, meu amigo dos tempos de colégio. Ela, amiga de faculdade;
O "último absoluto";
A amiga de trabalho do "último absoluto".

Personagens citados:

Minha amiga que também trabalha com o "último absoluto", quem deveria ter recebido a sacola. Amiga minha, não dele;
Minha amiga que não mais ganhará DVDs piratas de presente.

domingo, dezembro 25, 2005

Interlúdio

Carta amiga na véspera de Natal

Suas influências sobre mim se tornam cada vez mais evidentes. E eu detesto admitir, porque sempre detestei ter que te dar razão.

Ontem, no almoço na casa da Mari, tinha uma rodinha de violão. E eu, hoje, odeio rodinhas de violão. Um cara muito bacana que acabara de conhecer virou meu melhor amigo por conta dessa identificação imediata: nós dois estávamos odiando a rodinha de violão. Quando aquele coro de desafinos entoou Oceano, tive calafrios. E me lembrei de você.

À noite, fui naquela festa que combinamos, da qual você desistiu em cima da hora. Ainda fez questão de dizer que sou uma grande furona e que, portanto, eu não tinha direito a reclamações. Por essas e mais tantas te acho irritante.

Azar. Eu, se fosse você, lamentaria por perder a oportunidade de me ver berrando a letra de Bandages, do Hot Hot Heat.

Teve uma hora lá que um gringo perguntou se eu falava inglês e, com a resposta afirmativa, ficou berrando frases de contentamento por ter encontrado quem o compreendesse ali, no barulho daquela festa bêbada, esquisita e feliz.

O cara era interessante. Altão, estilo na medida, sem ser over. Eu já havia reparado, no meio de tanta gente, ele dançando sozinho. Mas você sabe do meu preconceito com gringos, né? Não é por nada, sem xenofobia, já te expliquei: odeio esse imaginário masculino internacional com relação à mulher brasileira. Odeio servir de personificação do pitoresco.

Ficamos conversando a noite inteira. Em vários momentos, pensei em uma de suas insistentes advertências: meu preconceito ainda me impediria de conhecer muita gente interessante. Mais uma vez, eu lembrei de você.

Ele tem 30 anos e estudou filosofia. Disse que eu era inteligente e tinha um ar esnobe. Você sabe que, nesses papos desconhecidos, eu sempre poso de intelectual e blasé. Pelo visto, colou. Hoje, me sinto uma farsa com padrão internacional. E, mais do que nunca, lembro de você.

Feliz Natal, amiga! Amo-te!

Interlúdio

Carta amiga na véspera de Natal

Suas influências sobre mim se tornam cada vez mais evidentes. E eu detesto admitir, porque sempre detestei ter que te dar razão.

Ontem, no almoço na casa da Mari, tinha uma rodinha de violão. E eu, hoje, odeio rodinhas de violão. Um cara muito bacana que acabara de conhecer virou meu melhor amigo por conta dessa identificação imediata: nós dois estávamos odiando a rodinha de violão. Quando aquele coro de desafinos entoou Oceano, tive calafrios. E me lembrei de você.

À noite, fui naquela festa que combinamos, da qual você desistiu em cima da hora. Ainda fez questão de dizer que sou uma grande furona e que, portanto, eu não tinha direito a reclamações. Por essas e mais tantas te acho irritante.

Azar. Eu, se fosse você, lamentaria por perder a oportunidade de me ver berrando a letra de Bandages, do Hot Hot Heat.

Teve uma hora lá que um gringo perguntou se eu falava inglês e, com a resposta afirmativa, ficou berrando frases de contentamento por ter encontrado quem o compreendesse ali, no barulho daquela festa bêbada, esquisita e feliz.

O cara era interessante. Altão, estilo na medida, sem ser over. Eu já havia reparado, no meio de tanta gente, ele dançando sozinho. Mas você sabe do meu preconceito com gringos, né? Não é por nada, sem xenofobia, já te expliquei: odeio esse imaginário masculino internacional com relação à mulher brasileira. Odeio servir de personificação do pitoresco.

Ficamos conversando a noite inteira. Em vários momentos, pensei em uma de suas insistentes advertências: meu preconceito ainda me impediria de conhecer muita gente interessante. Mais uma vez, eu lembrei de você.

Ele tem 30 anos e estudou filosofia. Disse que eu era inteligente e tinha um ar esnobe. Você sabe que, nesses papos desconhecidos, eu sempre poso de intelectual e blasé. Pelo visto, colou. Hoje, me sinto uma farsa com padrão internacional. E, mais do que nunca, lembro de você.

Feliz Natal, amiga! Amo-te!

quinta-feira, dezembro 22, 2005

Eu, por mim mesma - Tomo quarto

"No torpor do meu delírio torpe"

No recesso de tudo, durante os já falados quinze dias, li dois livros, ambos por indicações queridas. O primeiro, “A casa das belas adormecidas”, do Yasunari Kawabata, surgiu na conversa de mesa antes do cinema. Foi o que inspirou o Gabriel García Márquez em “Memoria de mis putas tristes”, o qual li no início do ano.

Dê discorreu poucos minutos sobre a obra. Suficiente para eu passar na livraria, depois da sessão de "Broken Flowers", e comprar um exemplar. Pedi que ela escrevesse uma dedicatória. “Por uma juventude menos ordinária; para uma velhice plena de alegrias, risos, acasos e lindas recordações. Que todos os nossos encontros e desencontros sejam como esse”. Palavras que ganhei.

O segundo foi indicação da Lili, que viu semelhanças entre meu jeito de escrever e o estilo da autora. O sugestivo título é "Ao homem que não me quis". Guardo a inspiração para os próximos tomos.

*****

O velho Eguchi, personagem experienciador, ao dormir com virgens dopadas, impedido de penetrá-las, faz de seus corpos catalisadores de lembranças. A vida é um amontoado de saudades. Em estado adiantado, tudo se acumula até doer...

Ora cheiros, ora toques; por vezes gosto, algumas rememoradas imagens. Ao som de ondas e rochas despudoradas que se esfregam naturalmente. O velho Eguchi, em suas experiências dos sentidos – propiciadas por aromas, cores, texturas, suspiros e sabores de suas belas adormecidas – , radicaliza a minha experiência de criação de caixas.

Elas, as belas, existem para que Eguchi viva suas melhores lembranças, seus acúmulos de fim de vida. As belas não precisam estar despertas para despertarem saudades esquecidas. Melhor até que não. Com as minhas caixas pesadas, amores são devaneios de embriaguez que dura até passar.

Com a leitura, roguei pela existência de quem me desvelasse; um corpo adormecido, no torpor do meu delírio torpe, que me lembrasse do muito amor que tenho, que esbanjo, e que só dou pra quem não pede. Que acumulo até explodir com juros, em juras.

Esconjuro. Juraria pelo sagrado para não precisar depender do pressuposto cruel de ser amada. Existindo quem me ame, me envaideço. Na ausência de quem me sinta, minha ira é dádiva.

A caixa, o depósito de meu sentir pesado, quem quer que seja, melhor que reste entorpecido, para não julgar as irrealidades dos meus ideais dopados.

Eu, por mim mesma - Tomo quarto

"No torpor do meu delírio torpe"

No recesso de tudo, durante os já falados quinze dias, li dois livros, ambos por indicações queridas. O primeiro, “A casa das belas adormecidas”, do Yasunari Kawabata, surgiu na conversa de mesa antes do cinema. Foi o que inspirou o Gabriel García Márquez em “Memoria de mis putas tristes”, o qual li no início do ano.

Dê discorreu poucos minutos sobre a obra. Suficiente para eu passar na livraria, depois da sessão de "Broken Flowers", e comprar um exemplar. Pedi que ela escrevesse uma dedicatória. “Por uma juventude menos ordinária; para uma velhice plena de alegrias, risos, acasos e lindas recordações. Que todos os nossos encontros e desencontros sejam como esse”. Palavras que ganhei.

O segundo foi indicação da Lili, que viu semelhanças entre meu jeito de escrever e o estilo da autora. O sugestivo título é "Ao homem que não me quis". Guardo a inspiração para os próximos tomos.

*****

O velho Eguchi, personagem experienciador, ao dormir com virgens dopadas, impedido de penetrá-las, faz de seus corpos catalisadores de lembranças. A vida é um amontoado de saudades. Em estado adiantado, tudo se acumula até doer...

Ora cheiros, ora toques; por vezes gosto, algumas rememoradas imagens. Ao som de ondas e rochas despudoradas que se esfregam naturalmente. O velho Eguchi, em suas experiências dos sentidos – propiciadas por aromas, cores, texturas, suspiros e sabores de suas belas adormecidas – , radicaliza a minha experiência de criação de caixas.

Elas, as belas, existem para que Eguchi viva suas melhores lembranças, seus acúmulos de fim de vida. As belas não precisam estar despertas para despertarem saudades esquecidas. Melhor até que não. Com as minhas caixas pesadas, amores são devaneios de embriaguez que dura até passar.

Com a leitura, roguei pela existência de quem me desvelasse; um corpo adormecido, no torpor do meu delírio torpe, que me lembrasse do muito amor que tenho, que esbanjo, e que só dou pra quem não pede. Que acumulo até explodir com juros, em juras.

Esconjuro. Juraria pelo sagrado para não precisar depender do pressuposto cruel de ser amada. Existindo quem me ame, me envaideço. Na ausência de quem me sinta, minha ira é dádiva.

A caixa, o depósito de meu sentir pesado, quem quer que seja, melhor que reste entorpecido, para não julgar as irrealidades dos meus ideais dopados.

sábado, dezembro 17, 2005

Eu, por mim mesma - Tomo terceiro

"Haja caixa pra tanto espetáculo"

Poucas vezes me vi amando. Já tentei inventar mil amores, mas sou exigente demais na hora de me iludir. A fantasia da cabeça voa até se esbarrar na coerência do meu sentir.

O “autor da frase” (último relacionamento duradouro que deixou de durar) tinha a cara de sonhos há muito gestados. “Nunca te vi e sempre te amei”. E eu achava que isso era uma doença a ser curada.

Hoje, penso que meus raros amores me serviram de caixas. Por conta da raridade dos meus amores, acumulo peças até encontrar uma caixa que eu julgue capaz de receber toda a minha capacidade de doar. Eu acumulo tanto pra dar muito depois. É por isso que não funciona. As poucas pessoas que amei foram as caixas escolhidas para entulhar de minhas sensações guardadas. Deve mesmo pesar.

Tudo fermenta dentro de mim, até o momento de oferecer. Eu mesma me deleito com aroma e sabor do que está há tempos engarrafado. Como aprovo tudo, é óbvio que recuso a desfeita de não ser de(gustada). Minha vaidade capital é pecado...

O “último absoluto” foi a melhor caixa que encontrei. Certa de que precisava me desvencilhar dos meus modelos, mantive a idéia fixa de me surpreender. E aconteceu. Sem pensar em nada, nesses esbarrões do acaso, encontrei nele o depósito para o que eu imaginava ser o melhor de mim.

Uma vez eu lhe disse que não sabia se gostava de estar com ele, ou se gostava de mim mesma quando ao seu lado. Palavras que exemplificam minha maneira egocêntrica de amar.

A caixa, pra completar, era espelhada. Nela, eu amava contemplar minha cara de amante. Tantas pessoas passam por mim sem que eu as ame que quando acontece é festa, palco, filme, aplauso. Um pouco circo também. Nessas horas, corda-bamba e nariz de palhaço é comigo mesmo.

Haja caixa pra tanto espetáculo...

Eu, por mim mesma - Tomo terceiro

"Haja caixa pra tanto espetáculo"

Poucas vezes me vi amando. Já tentei inventar mil amores, mas sou exigente demais na hora de me iludir. A fantasia da cabeça voa até se esbarrar na coerência do meu sentir.

O “autor da frase” (último relacionamento duradouro que deixou de durar) tinha a cara de sonhos há muito gestados. “Nunca te vi e sempre te amei”. E eu achava que isso era uma doença a ser curada.

Hoje, penso que meus raros amores me serviram de caixas. Por conta da raridade dos meus amores, acumulo peças até encontrar uma caixa que eu julgue capaz de receber toda a minha capacidade de doar. Eu acumulo tanto pra dar muito depois. É por isso que não funciona. As poucas pessoas que amei foram as caixas escolhidas para entulhar de minhas sensações guardadas. Deve mesmo pesar.

Tudo fermenta dentro de mim, até o momento de oferecer. Eu mesma me deleito com aroma e sabor do que está há tempos engarrafado. Como aprovo tudo, é óbvio que recuso a desfeita de não ser de(gustada). Minha vaidade capital é pecado...

O “último absoluto” foi a melhor caixa que encontrei. Certa de que precisava me desvencilhar dos meus modelos, mantive a idéia fixa de me surpreender. E aconteceu. Sem pensar em nada, nesses esbarrões do acaso, encontrei nele o depósito para o que eu imaginava ser o melhor de mim.

Uma vez eu lhe disse que não sabia se gostava de estar com ele, ou se gostava de mim mesma quando ao seu lado. Palavras que exemplificam minha maneira egocêntrica de amar.

A caixa, pra completar, era espelhada. Nela, eu amava contemplar minha cara de amante. Tantas pessoas passam por mim sem que eu as ame que quando acontece é festa, palco, filme, aplauso. Um pouco circo também. Nessas horas, corda-bamba e nariz de palhaço é comigo mesmo.

Haja caixa pra tanto espetáculo...

terça-feira, dezembro 13, 2005

Eu, por mim mesma, em sete tomos

Prelúdio:

As duas últimas semanas foram de pequenas das minhas intermináveis descobertas. Por isso, não me incomoda a idéia de que as próximas postagens versem sobre o meu umbigo. Escrevi antes textos igualmente “umbiguistas”, mas recentemente apaguei-os todos. Pode ser que eu venha a apagar os que, agora, penso em escrever. Mas, neste momento, o meu umbigo importa.

Eu por mim mesma – Tomo primeiro: "Cheiro de amêndoas amargas"

“Volte a ler um livro atrás do outro, faz bem à nossa relação”. O autor da frase é um ex-namorado. Lembrei muito do conselho dele nos últimos dias, porque concluí que, atualmente e há tempos, quem estiver comigo precisa ter a sensibilidade de adaptar a exortação para “não deixe de escrever”.

Andei apaixonada (e já não me refiro ao autor da agora célebre frase). Nunca disse isso a ele, porque odeio ser óbvia. Bastava a obviedade da minha paixão. Engraçado como paixão não me inspira: me paralisa. Meu sentir transforma impulsos cerebrais outrora úteis em abstrações indizíveis que, por isso mesmo, castram palavras. O apaixonar me idiotiza. Minha criatividade vai pras cucuias. E eu odeio ser óbvia, e odeio me repetir, como agora. Resquícios de paixão...

Até aqui - salve meus 24 anos! - tive poucas paixões. Falo de paixão mesmo, não dessas minhas invenções de que me utilizo para escrever boas histórias. Afinal, o apaixonar me idiotiza e, quando idiota, não escrevo boas histórias.

As duas últimas paixões, o já remoto autor da frase e o último absoluto, eles eu acho que amei. Só digo que me apaixonei pra, de alguma forma, desmerecer o que senti. Mantenho a crença de que o amor não me faria esbanjar tanta lágrima vagabunda. Mantenho a crença pra doer menos, pensando no dia em que amarei.

Os dois tiveram a criatividade de não me amar. Daqui por diante, quem fizer igual já não tem o mérito da originalidade. Não que isso signifique muita coisa, pois basta que eu me apaixone. Afinal, o apaixonar me idiotiza. E me torna repetitiva o suficiente pra ser óbvia outra vez.

O autor da frase costumava dizer que eu vivia “digerindo” tudo e que um dia eu escreveria um livro: “eu, por mim mesma, em sete tomos”. Depois que a paixão acaba, tudo vira inspiração. Hoje, me valho do título debochado de anos atrás pra me inspirar escritos, não sobre ele, "o autor da frase", mas sobre "o último absoluto". Esse não deixou qualquer sugestão de título para a posteridade. Ele não ligava pra esse negócio de literatura. Ele só lia as figuras.

Eu por mim mesma – Tomo segundo: "Um diagnóstico sentimental"

Nos últimos quinze dias, parei para não parar de vez. Há duas terças-feiras acordei em prantos, com dor no peito, respiração curta e taquicardia. Desespero acumulado por conta da falta de concentração e da exaustão que me distanciam de definições que me levariam ao descanso.

Depois de vários dias chorando, chegou a hora consulta. Falei da dor no peito, da falta de concentração e da taquicardia. A médica me perguntou se eu desconfiava do motivo de tudo isso. “É muita coisa. Necessito de recomeço”, respondi. Aos poucos, enumerei as muitas coisas: quatro anos sem férias, vontade de independência inversamente proporcional à minha estabilidade profissional, minha mente megalômana cansada. E todas as outras miudezas que se agigantaram nos últimos tempos devido a esses três principais motivos.

A doutora concordou que era muita coisa. Mesmo assim quis saber mais: “E o coração?”. “Se recuperando de um 'amor contrariado'”, disse eu, floreando com García Marquez. Ela deu uma risadinha, fez cara de quem sempre adivinha tudo e concluiu: “Quando o coração vai bem, o resto fica mais fácil”.

Se eu soubesse, desmereceria o amor.

Eu, por mim mesma, em sete tomos

Prelúdio:

As duas últimas semanas foram de pequenas das minhas intermináveis descobertas. Por isso, não me incomoda a idéia de que as próximas postagens versem sobre o meu umbigo. Escrevi antes textos igualmente “umbiguistas”, mas recentemente apaguei-os todos. Pode ser que eu venha a apagar os que, agora, penso em escrever. Mas, neste momento, o meu umbigo importa.

Eu por mim mesma – Tomo primeiro: "Cheiro de amêndoas amargas"

“Volte a ler um livro atrás do outro, faz bem à nossa relação”. O autor da frase é um ex-namorado. Lembrei muito do conselho dele nos últimos dias, porque concluí que, atualmente e há tempos, quem estiver comigo precisa ter a sensibilidade de adaptar a exortação para “não deixe de escrever”.

Andei apaixonada (e já não me refiro ao autor da agora célebre frase). Nunca disse isso a ele, porque odeio ser óbvia. Bastava a obviedade da minha paixão. Engraçado como paixão não me inspira: me paralisa. Meu sentir transforma impulsos cerebrais outrora úteis em abstrações indizíveis que, por isso mesmo, castram palavras. O apaixonar me idiotiza. Minha criatividade vai pras cucuias. E eu odeio ser óbvia, e odeio me repetir, como agora. Resquícios de paixão...

Até aqui - salve meus 24 anos! - tive poucas paixões. Falo de paixão mesmo, não dessas minhas invenções de que me utilizo para escrever boas histórias. Afinal, o apaixonar me idiotiza e, quando idiota, não escrevo boas histórias.

As duas últimas paixões, o já remoto autor da frase e o último absoluto, eles eu acho que amei. Só digo que me apaixonei pra, de alguma forma, desmerecer o que senti. Mantenho a crença de que o amor não me faria esbanjar tanta lágrima vagabunda. Mantenho a crença pra doer menos, pensando no dia em que amarei.

Os dois tiveram a criatividade de não me amar. Daqui por diante, quem fizer igual já não tem o mérito da originalidade. Não que isso signifique muita coisa, pois basta que eu me apaixone. Afinal, o apaixonar me idiotiza. E me torna repetitiva o suficiente pra ser óbvia outra vez.

O autor da frase costumava dizer que eu vivia “digerindo” tudo e que um dia eu escreveria um livro: “eu, por mim mesma, em sete tomos”. Depois que a paixão acaba, tudo vira inspiração. Hoje, me valho do título debochado de anos atrás pra me inspirar escritos, não sobre ele, "o autor da frase", mas sobre "o último absoluto". Esse não deixou qualquer sugestão de título para a posteridade. Ele não ligava pra esse negócio de literatura. Ele só lia as figuras.

Eu por mim mesma – Tomo segundo: "Um diagnóstico sentimental"

Nos últimos quinze dias, parei para não parar de vez. Há duas terças-feiras acordei em prantos, com dor no peito, respiração curta e taquicardia. Desespero acumulado por conta da falta de concentração e da exaustão que me distanciam de definições que me levariam ao descanso.

Depois de vários dias chorando, chegou a hora consulta. Falei da dor no peito, da falta de concentração e da taquicardia. A médica me perguntou se eu desconfiava do motivo de tudo isso. “É muita coisa. Necessito de recomeço”, respondi. Aos poucos, enumerei as muitas coisas: quatro anos sem férias, vontade de independência inversamente proporcional à minha estabilidade profissional, minha mente megalômana cansada. E todas as outras miudezas que se agigantaram nos últimos tempos devido a esses três principais motivos.

A doutora concordou que era muita coisa. Mesmo assim quis saber mais: “E o coração?”. “Se recuperando de um 'amor contrariado'”, disse eu, floreando com García Marquez. Ela deu uma risadinha, fez cara de quem sempre adivinha tudo e concluiu: “Quando o coração vai bem, o resto fica mais fácil”.

Se eu soubesse, desmereceria o amor.

quinta-feira, julho 14, 2005

A esgotar meus verbos

Alguém me confessou ter medo da felicidade, por ser ela tão fugaz. Percebi que isso não me incomoda e conheço bem a razão: vivo como se estivesse a escrever uma autobiografia, ou, quem sabe, contando histórias para netos que hão de vir. Mesmo os maus momentos rendem boas histórias. Descobri que vivo mais pelas histórias que pelos momentos. Sou personagem para as minhas próprias narrativas, contos, poemas. Protagonista, coadjuvante, atuante, observadora. Contracenar, interpretar ou narrar. Tanto faz, me faz feliz.

Quis compartilhar, não sei se consegui. Meus momentos de extrema felicidade acontecem quando me sinto (pareço estar) à frente das minhas vivências. Quando eu trabalhava na Glória, todos os dias descia do ônibus nos Arcos da Lapa e caminhava um bom pedaço. Percurso de olhar para os rostos, sentir na face os raios de luminosidade carioca, aspirar o fedor inebriante das esquinas repletas de humanidades. Nessas horas me invadia uma saudade quase dolorida das ruas do Rio de Janeiro, aquelas mesmas que eu tinha diante dos meus olhos. Como se eu não estivesse vivendo, mas recordando. Gabriel García Márquez... À frente de mim mesma todas as sensações características de quem recorda no futuro, quando ele vira presente.

Perguntaram se não acho que me exponho ao escrever aqui. Penso que não, porque antes de escrever já deixei de ser. Acabo de me lembrar de Nietzsche. Não foi ele que disse que alguns homens nascem póstumos? Desconheço o significado de suas palavras, talvez poucas pessoas tenham entendido o que ele quis dizer, muito provavelmente ninguém. Mas, como todo mundo, interpreto. Vejo agora como faz sentido falar em memórias póstumas. Sempre amei Machado de Assis, agora com minhas vísceras. Só muito vivo se escreve postumamente. À frente de mim mesma, posso dizer do que já morreu, do que somente é na lembrança. Essa, pra mim, é a vivência suprema. Póstuma felicidade da vivência suprema. Felicidade suprema da vivência póstuma. Felicidade da vivência póstuma suprema. Póstuma vivência da felicidade suprema. Póstuma. Vivência. Felicidade. O que é supremo será divino?

Vivo num mundo de sonhos que torna o real insuportável. Mentira. Vivo o mundo real e os que não sonham me são insuportáveis. Depois dos momentos mágicos, parece enfadonho abdicar da poesia...

Descobri também que tudo pode ser banal ou mágico. A diferença entre um e outro se esconde no meu olhar. Deus não me castiga pelos meus pecados. Eu, sozinha, por mim mesma, sofro por não me encantar. Meu pecado se dá quando já não pasmo mais. Existe um mistério transcendente no amor e isso jamais se esgota. O que torna minha solidão mais aguda não é imaginar que jamais entenderão os meus mistérios, mas o medo de que alguém os compreenda e, assim, eles deixem de fazer sentido.

Viver em função da cristalização dos extremos é negar a essência de movimento, a pulsação. Tomo a imagem de um pêndulo: os pólos, com velocidade nula, significam a inércia, mas ela se faz momentânea e prenhe de movimento. Felicidade e tristeza são pólos. Mas a maior parte da parábola é feita de trajeto. Trajetória, movimento, caminho. Há mais ir que chegar.

Eu tinha uma dúvida em relação ao equilíbrio. Descobri que o equilíbrio é o movimento em si. As paradas são os picos fugidios. No equilíbrio aflora a beleza do ordinário para além do êxtase do extraordinário. Nem exaltação da santa, nem apedrejamento da puta. Banidos os heróis, exilados os bandidos. Resta um mundo de essencialmente humanos.

Perdoa-me se suas agonias me geram reflexão. Eu ando mesmo muito sozinha...

A esgotar meus verbos

Alguém me confessou ter medo da felicidade, por ser ela tão fugaz. Percebi que isso não me incomoda e conheço bem a razão: vivo como se estivesse a escrever uma autobiografia, ou, quem sabe, contando histórias para netos que hão de vir. Mesmo os maus momentos rendem boas histórias. Descobri que vivo mais pelas histórias que pelos momentos. Sou personagem para as minhas próprias narrativas, contos, poemas. Protagonista, coadjuvante, atuante, observadora. Contracenar, interpretar ou narrar. Tanto faz, me faz feliz.

Quis compartilhar, não sei se consegui. Meus momentos de extrema felicidade acontecem quando me sinto (pareço estar) à frente das minhas vivências. Quando eu trabalhava na Glória, todos os dias descia do ônibus nos Arcos da Lapa e caminhava um bom pedaço. Percurso de olhar para os rostos, sentir na face os raios de luminosidade carioca, aspirar o fedor inebriante das esquinas repletas de humanidades. Nessas horas me invadia uma saudade quase dolorida das ruas do Rio de Janeiro, aquelas mesmas que eu tinha diante dos meus olhos. Como se eu não estivesse vivendo, mas recordando. Gabriel García Márquez... À frente de mim mesma todas as sensações características de quem recorda no futuro, quando ele vira presente.

Perguntaram se não acho que me exponho ao escrever aqui. Penso que não, porque antes de escrever já deixei de ser. Acabo de me lembrar de Nietzsche. Não foi ele que disse que alguns homens nascem póstumos? Desconheço o significado de suas palavras, talvez poucas pessoas tenham entendido o que ele quis dizer, muito provavelmente ninguém. Mas, como todo mundo, interpreto. Vejo agora como faz sentido falar em memórias póstumas. Sempre amei Machado de Assis, agora com minhas vísceras. Só muito vivo se escreve postumamente. À frente de mim mesma, posso dizer do que já morreu, do que somente é na lembrança. Essa, pra mim, é a vivência suprema. Póstuma felicidade da vivência suprema. Felicidade suprema da vivência póstuma. Felicidade da vivência póstuma suprema. Póstuma vivência da felicidade suprema. Póstuma. Vivência. Felicidade. O que é supremo será divino?

Vivo num mundo de sonhos que torna o real insuportável. Mentira. Vivo o mundo real e os que não sonham me são insuportáveis. Depois dos momentos mágicos, parece enfadonho abdicar da poesia...

Descobri também que tudo pode ser banal ou mágico. A diferença entre um e outro se esconde no meu olhar. Deus não me castiga pelos meus pecados. Eu, sozinha, por mim mesma, sofro por não me encantar. Meu pecado se dá quando já não pasmo mais. Existe um mistério transcendente no amor e isso jamais se esgota. O que torna minha solidão mais aguda não é imaginar que jamais entenderão os meus mistérios, mas o medo de que alguém os compreenda e, assim, eles deixem de fazer sentido.

Viver em função da cristalização dos extremos é negar a essência de movimento, a pulsação. Tomo a imagem de um pêndulo: os pólos, com velocidade nula, significam a inércia, mas ela se faz momentânea e prenhe de movimento. Felicidade e tristeza são pólos. Mas a maior parte da parábola é feita de trajeto. Trajetória, movimento, caminho. Há mais ir que chegar.

Eu tinha uma dúvida em relação ao equilíbrio. Descobri que o equilíbrio é o movimento em si. As paradas são os picos fugidios. No equilíbrio aflora a beleza do ordinário para além do êxtase do extraordinário. Nem exaltação da santa, nem apedrejamento da puta. Banidos os heróis, exilados os bandidos. Resta um mundo de essencialmente humanos.

Perdoa-me se suas agonias me geram reflexão. Eu ando mesmo muito sozinha...

quarta-feira, junho 08, 2005

As filhas de Deus

“Senhor, te agradeço por três razões: primeiro, porque não sou um gentio; te agradeço porque não sou um animal e, em terceiro lugar, porque não nasci mulher”. Uma vez li que, nos tempos de Cristo, essa era a primeira oração de um judeu quando se levantava pela manhã. Isso me remete a algumas questões.

Os teólogos da libertação há muito defendem a necessidade de reformulação das leis “divinas” que vetam a presença feminina em posições de liderança nas comunidades religiosas. Isso porque, se nos círculos judaicos de antigamente existia uma quase equivalência entre animal e mulher, o cristianismo produziu uma situação tão ou mais anômala: às mulheres, foram reservados os lugares de santas ou prostitutas. Assim, elas permaneceram banidas da vida cotidiana; algumas enviadas para o céu, outras exiladas no inferno, mas, de um modo geral, todas excluídas do mundo dos homens.

Pensando nas polêmicas do Código Da Vinci de Dan Brown (que não li), me falta paciência para as elucubrações a respeito da sexualidade de Jesus e sua suposta união com Maria Madalena, pela maneira infantil como a questão é tratada e discutida. De um lado, fica a Igreja querendo proteger a castidade de seu ícone mais caro. Do outro, uma penca de “hereges” preocupadíssimos em demonstrar a falsidade da fé cristã provando que o enviado de Deus possuía órgão sexual e (pior!) fazia uso dele.

As razões que levam a Igreja a lutar contra tais teorias me são bastante claras, já que elas abalam os pilares de verdade até hoje construídos. O fetiche dos “hereges” também – afinal, eles normalmente atraem para si todos os “demônios” do marketing, numa época em que fogueira mesmo, só a das vaidades. Mas nessa guerra, o que me chama a atenção são os “cristãos comuns”. Por que o fato de Maria Madalena se sentar na mesa da Santa Ceia (segundo as especulações do Código Da Vinci) abalaria a fé do fiel comum?

Essa atmosfera “legalista” abafa questões que considero cruciais. Leonardo Boff costuma dizer que Jesus era tão humano que, por isso, só poderia ser divino. Os relatos bíblicos demonstram que Jesus convivia e dialogava com mulheres. Muitas delas, não bastasse a exclusão natural a que estavam submetidas por uma simples questão de gênero, ainda eram pobres, adúlteras, viúvas ou prostitutas – o que significa dizer, no contexto da época, marginalizadas. Gente assim compunha o grupo daquele que, segundo se anunciava, era o Filho do Homem.

Do meu lugar de mulher do século 21, eu diria que respeito a figura de um Cristo celibatário. Mas, se Jesus de Nazaré realmente uniu-se a uma ex-prostituta, há dois mil anos atrás, numa sociedade preconceituosa e marcada por uma forte segregação sexual, e ainda lhe reservou assento na mesa em que compartilhou o pão e o vinho pela última vez, não preciso de qualquer outro milagre para ver nele santidade e acreditar que ele era mesmo filho de Deus.

As filhas de Deus

“Senhor, te agradeço por três razões: primeiro, porque não sou um gentio; te agradeço porque não sou um animal e, em terceiro lugar, porque não nasci mulher”. Uma vez li que, nos tempos de Cristo, essa era a primeira oração de um judeu quando se levantava pela manhã. Isso me remete a algumas questões.

Os teólogos da libertação há muito defendem a necessidade de reformulação das leis “divinas” que vetam a presença feminina em posições de liderança nas comunidades religiosas. Isso porque, se nos círculos judaicos de antigamente existia uma quase equivalência entre animal e mulher, o cristianismo produziu uma situação tão ou mais anômala: às mulheres, foram reservados os lugares de santas ou prostitutas. Assim, elas permaneceram banidas da vida cotidiana; algumas enviadas para o céu, outras exiladas no inferno, mas, de um modo geral, todas excluídas do mundo dos homens.

Pensando nas polêmicas do Código Da Vinci de Dan Brown (que não li), me falta paciência para as elucubrações a respeito da sexualidade de Jesus e sua suposta união com Maria Madalena, pela maneira infantil como a questão é tratada e discutida. De um lado, fica a Igreja querendo proteger a castidade de seu ícone mais caro. Do outro, uma penca de “hereges” preocupadíssimos em demonstrar a falsidade da fé cristã provando que o enviado de Deus possuía órgão sexual e (pior!) fazia uso dele.

As razões que levam a Igreja a lutar contra tais teorias me são bastante claras, já que elas abalam os pilares de verdade até hoje construídos. O fetiche dos “hereges” também – afinal, eles normalmente atraem para si todos os “demônios” do marketing, numa época em que fogueira mesmo, só a das vaidades. Mas nessa guerra, o que me chama a atenção são os “cristãos comuns”. Por que o fato de Maria Madalena se sentar na mesa da Santa Ceia (segundo as especulações do Código Da Vinci) abalaria a fé do fiel comum?

Essa atmosfera “legalista” abafa questões que considero cruciais. Leonardo Boff costuma dizer que Jesus era tão humano que, por isso, só poderia ser divino. Os relatos bíblicos demonstram que Jesus convivia e dialogava com mulheres. Muitas delas, não bastasse a exclusão natural a que estavam submetidas por uma simples questão de gênero, ainda eram pobres, adúlteras, viúvas ou prostitutas – o que significa dizer, no contexto da época, marginalizadas. Gente assim compunha o grupo daquele que, segundo se anunciava, era o Filho do Homem.

Do meu lugar de mulher do século 21, eu diria que respeito a figura de um Cristo celibatário. Mas, se Jesus de Nazaré realmente uniu-se a uma ex-prostituta, há dois mil anos atrás, numa sociedade preconceituosa e marcada por uma forte segregação sexual, e ainda lhe reservou assento na mesa em que compartilhou o pão e o vinho pela última vez, não preciso de qualquer outro milagre para ver nele santidade e acreditar que ele era mesmo filho de Deus.

quinta-feira, maio 26, 2005

Dispersão de público alvo

Véspera de feriado, quarta-feira com cara de sexta, decido sair com os amigos. Fico na dúvida em relação ao que vestir. Sabe quando mulher quer se sentir bonita? Pois então, ontem parecia ser meu dia. Experimento várias roupas, mas demoro até me dar por satisfeita. Na primeira tentativa, me sinto conservadora. Depois, ousada. Mulher fatal, Lolita. Muito casual, emperiquitada demais. Até que, enfim, me aprovo. Sóbria, de preto, um casaco de uma outra cor para quebrar um pouco. Blusa com decote sutil, bem feminina, nada vulgar. Dou um trato nas madeixas. Pouca maquiagem muito discreta. E pronto.

Saio e espero no local onde passariam para me buscar. Estou eu, maravilhosa, na rua, até que reconheço de longe o carro, que vem encostando, na minha direção. “Chegaram”, penso. Aí, resolvo bancar a engraçadinha: dou uma requebrada, coloco a mão direita na cintura, o dedo esquerdo na boca, faço biquinho e pisco os olhinhos. Sai de dentro do automóvel um cara que nunca vi mais gordo e me diz que me leva pra onde eu quiser. Minha alma se ausenta do meu corpo e volta a tempo de eu pedir desculpas por ter confundido os veículos absolutamente idênticos – e quantos outros não há?

Três minutos depois, entro no carro certo. A noite mal começou e eu já garantindo meu lugar de piada. Tudo bem, afinal, ainda me sinto ótima. Estacionamos, não muito perto, pela dificuldade de encontrar vagas. Começamos a andar, a chuva resolve voltar. Pras cucuias o capricho com os cabelos. Por fim, sentamos num bar e, como está abafado lá dentro, eu, já ligeiramente desgrenhada, tiro o casaco e penso que nem tudo está perdido: resta o meu decote.

Papo vai, papo vem, eu deixo o meu celular na mesa, porque espero uma ligação. Aliás, a ligação já está uma hora atrasada. Por fim, o telefone toca. Ufa! E eu achando que ia levar uma volta. Em cinco minutos ele chega, bêbado, sem a menor capacidade de distinguir o meu decote do avental do garçom. Em compensação, também não pode notar que estou descabelada, com a pouca maquiagem borrada e a calça manchada de molho madeira do filet mignon que devorei enquanto esperava por ele.

Na mesa ao lado, há um grupo de sete, a faixa etária média é de uns 45 anos, mas tem gente de seus 60. Avisto, depois, alguém em torno dos 30. Reparo que não param de me olhar. Será que isso se deve ao fato de eu estar desgrenhada e suja de molho madeira? Que nada. As mesas estão muito próximas, alguém segura no meu braço, sem que seja necessário levantar da cadeira, e me diz, olhando bem pro meu decote: “há, nessa mesa, três pessoas interessadas em você. Por que não nos dá seu telefone?”. Com uma olhada rápida, descubro de onde parte o interesse. Eu nem tinha reparado, mas há dois casais ali. Ou seja, o restante está me querendo.

Solto uma risadinha meio sem jeito, tentando ser simpática, mas não dou o número. Fico bastante impressionada com a ousadia. Perguntam meu nome, eu educadamente respondo, e me viro de novo para escutar o que o meu companheiro bêbado está dizendo, porque ele não pára mais de falar. Dali a três minutos, o pessoal da mesa ao lado me chama outra vez. Pedem licença ao cavalheiro embriagado que me acompanha e me entregam um papel, com quatro números de celular (pelo visto, um dos casais não é tão sério quanto imaginei) e quatro nomes: Sônia, Malu, Beth e Verônica. Junto, um convite para uma festa GLS num clube em Copacabana. Agradeço a gentileza e peço a conta.

O bêbado mora ali por perto, vai andando pra casa, e – que sorte! – eu nem preciso carregá-lo.

Dispersão de público alvo

Véspera de feriado, quarta-feira com cara de sexta, decido sair com os amigos. Fico na dúvida em relação ao que vestir. Sabe quando mulher quer se sentir bonita? Pois então, ontem parecia ser meu dia. Experimento várias roupas, mas demoro até me dar por satisfeita. Na primeira tentativa, me sinto conservadora. Depois, ousada. Mulher fatal, Lolita. Muito casual, emperiquitada demais. Até que, enfim, me aprovo. Sóbria, de preto, um casaco de uma outra cor para quebrar um pouco. Blusa com decote sutil, bem feminina, nada vulgar. Dou um trato nas madeixas. Pouca maquiagem muito discreta. E pronto.

Saio e espero no local onde passariam para me buscar. Estou eu, maravilhosa, na rua, até que reconheço de longe o carro, que vem encostando, na minha direção. “Chegaram”, penso. Aí, resolvo bancar a engraçadinha: dou uma requebrada, coloco a mão direita na cintura, o dedo esquerdo na boca, faço biquinho e pisco os olhinhos. Sai de dentro do automóvel um cara que nunca vi mais gordo e me diz que me leva pra onde eu quiser. Minha alma se ausenta do meu corpo e volta a tempo de eu pedir desculpas por ter confundido os veículos absolutamente idênticos – e quantos outros não há?

Três minutos depois, entro no carro certo. A noite mal começou e eu já garantindo meu lugar de piada. Tudo bem, afinal, ainda me sinto ótima. Estacionamos, não muito perto, pela dificuldade de encontrar vagas. Começamos a andar, a chuva resolve voltar. Pras cucuias o capricho com os cabelos. Por fim, sentamos num bar e, como está abafado lá dentro, eu, já ligeiramente desgrenhada, tiro o casaco e penso que nem tudo está perdido: resta o meu decote.

Papo vai, papo vem, eu deixo o meu celular na mesa, porque espero uma ligação. Aliás, a ligação já está uma hora atrasada. Por fim, o telefone toca. Ufa! E eu achando que ia levar uma volta. Em cinco minutos ele chega, bêbado, sem a menor capacidade de distinguir o meu decote do avental do garçom. Em compensação, também não pode notar que estou descabelada, com a pouca maquiagem borrada e a calça manchada de molho madeira do filet mignon que devorei enquanto esperava por ele.

Na mesa ao lado, há um grupo de sete, a faixa etária média é de uns 45 anos, mas tem gente de seus 60. Avisto, depois, alguém em torno dos 30. Reparo que não param de me olhar. Será que isso se deve ao fato de eu estar desgrenhada e suja de molho madeira? Que nada. As mesas estão muito próximas, alguém segura no meu braço, sem que seja necessário levantar da cadeira, e me diz, olhando bem pro meu decote: “há, nessa mesa, três pessoas interessadas em você. Por que não nos dá seu telefone?”. Com uma olhada rápida, descubro de onde parte o interesse. Eu nem tinha reparado, mas há dois casais ali. Ou seja, o restante está me querendo.

Solto uma risadinha meio sem jeito, tentando ser simpática, mas não dou o número. Fico bastante impressionada com a ousadia. Perguntam meu nome, eu educadamente respondo, e me viro de novo para escutar o que o meu companheiro bêbado está dizendo, porque ele não pára mais de falar. Dali a três minutos, o pessoal da mesa ao lado me chama outra vez. Pedem licença ao cavalheiro embriagado que me acompanha e me entregam um papel, com quatro números de celular (pelo visto, um dos casais não é tão sério quanto imaginei) e quatro nomes: Sônia, Malu, Beth e Verônica. Junto, um convite para uma festa GLS num clube em Copacabana. Agradeço a gentileza e peço a conta.

O bêbado mora ali por perto, vai andando pra casa, e – que sorte! – eu nem preciso carregá-lo.

terça-feira, maio 24, 2005

Pequenos engasgados

Os alunos do curso têm muito receio de escrever. Atmosfera estranha... Levei um texto do Ferréz, literatura marginal. Mas antes, pedi que me dissessem o que a palavra "marginal" significava para eles. Rolou uma troca de olhares, quiseram que eu escolhesse outra palavra, se recusaram a responder. E mais troca de olhares... Até que alguns decidiram falar: "Malandragem, bandidagem, tráfico, arma, roubo", e por aí foi.

Falei do marginal que é o cara que está à margem, antes de ser bandido, malandro e pegar em armas. Eles, então, relaxaram.

Depois de uma atividade lá, cada um fez um texto de 15 linhas. O tema foi "Tenho raiva de...". Antes de escreverem, perguntaram se leriam em voz alta, se precisariam apresentar pros outros colegas da turma. Respondi que não, eles se sentiram mais confortáveis. A seguir, alguns trechos:


"Tenho raiva de quem não gosta de mim, da Diretora da escola, da criminalidade, da professora de português, do homem que matou meu pai".
M.S.

"Tenho raiva de bala perdida, porque mata inocentes. Tenho raiva dos políticos que roubam, porque as pessoas não têm dinheiro para gastar com o leite dos filhos, e ainda pagam impostos, e ainda são roubados pelos políticos".
J.M.

"Eu tenho raiva do meu pai porque ele nunca me deu nada em toda minha vida".
S.O.

"Tenho raiva de acordar e não ter o que comer
Tenho raiva de tanto que já chorei por medo de dormir e não mais acordar
Tenho raiva porque perdi meu primo no tráfico
Tenho raiva porque não posso voltar atrás do que perdi
A única coisa que tanto tenho raiva de ter é odiar quando simplesmente se quer amar"
M.N.

"Eu tenho raiva dessa pessoa, porque ela é muito folgada.
Quando ela aparece na televisão me dá um ódio; quando ela faz o programa dá vontade de nem escutar a televisão.
Ela é cheia do dinheiro, ela podia parar, descansar.
Não, quer ganhar mais para deixar a sua herança para a sua filha.
Ela faz propaganda de shampoo, ela podia deixar para outra pessoa pobre.
Ela podia dividir o seu dinheiro para as pessoas que passam necessidade.
Me dá uma vontade de xingar, aquela loura falsificada.
O nome dessa pessoa que tanto odeio é a Xuxa. Essa filha da mãe!"
L.R.

Pequenos engasgados

Os alunos do curso têm muito receio de escrever. Atmosfera estranha... Levei um texto do Ferréz, literatura marginal. Mas antes, pedi que me dissessem o que a palavra "marginal" significava para eles. Rolou uma troca de olhares, quiseram que eu escolhesse outra palavra, se recusaram a responder. E mais troca de olhares... Até que alguns decidiram falar: "Malandragem, bandidagem, tráfico, arma, roubo", e por aí foi.

Falei do marginal que é o cara que está à margem, antes de ser bandido, malandro e pegar em armas. Eles, então, relaxaram.

Depois de uma atividade lá, cada um fez um texto de 15 linhas. O tema foi "Tenho raiva de...". Antes de escreverem, perguntaram se leriam em voz alta, se precisariam apresentar pros outros colegas da turma. Respondi que não, eles se sentiram mais confortáveis. A seguir, alguns trechos:


"Tenho raiva de quem não gosta de mim, da Diretora da escola, da criminalidade, da professora de português, do homem que matou meu pai".
M.S.

"Tenho raiva de bala perdida, porque mata inocentes. Tenho raiva dos políticos que roubam, porque as pessoas não têm dinheiro para gastar com o leite dos filhos, e ainda pagam impostos, e ainda são roubados pelos políticos".
J.M.

"Eu tenho raiva do meu pai porque ele nunca me deu nada em toda minha vida".
S.O.

"Tenho raiva de acordar e não ter o que comer
Tenho raiva de tanto que já chorei por medo de dormir e não mais acordar
Tenho raiva porque perdi meu primo no tráfico
Tenho raiva porque não posso voltar atrás do que perdi
A única coisa que tanto tenho raiva de ter é odiar quando simplesmente se quer amar"
M.N.

"Eu tenho raiva dessa pessoa, porque ela é muito folgada.
Quando ela aparece na televisão me dá um ódio; quando ela faz o programa dá vontade de nem escutar a televisão.
Ela é cheia do dinheiro, ela podia parar, descansar.
Não, quer ganhar mais para deixar a sua herança para a sua filha.
Ela faz propaganda de shampoo, ela podia deixar para outra pessoa pobre.
Ela podia dividir o seu dinheiro para as pessoas que passam necessidade.
Me dá uma vontade de xingar, aquela loura falsificada.
O nome dessa pessoa que tanto odeio é a Xuxa. Essa filha da mãe!"
L.R.

sábado, maio 21, 2005

Do avesso

Bom, já que é para ter imagens, coisa que venho prometendo e nunca cumpro, resolvi postar uma que me traduzisse. Não sou mesmo uma graça?


Eu digerindo
Posted by Hello

Do avesso

Bom, já que é para ter imagens, coisa que venho prometendo e nunca cumpro, resolvi postar uma que me traduzisse. Não sou mesmo uma graça?


Eu digerindo
Posted by Hello

segunda-feira, maio 16, 2005

Algo sobre muito pouco

Por conta das minhas recentes digestões acerca de overdoses informacionais e da pergunta que finalizou meu último post, decidi falar a respeito daquilo que mais me remete a excesso: falta.

Uma vez me interroguei sobre as três coisas essenciais que me fariam feliz e sem as quais não poderia viver. Pensei em amados amigos (entre os quais incluo os amantes), livros e cinema. Depois disso, fiquei toda prosa de ter conseguido excluir das minhas essencialidades algo tão fundamental quanto viajar, por exemplo. Analisei bem, por fim concluí que dá sim para viver sem as sonhadas andanças, e ainda lembrei da citação budista: “o que não está bom aqui, não estará bom lá”.

Orgulhosa da minha renúncia a "quase todos" os prazeres, caí na besteira de mencionar isso para uma ex-aluna, do tempo das aulas voluntárias de inglês no morro do Preventório. K., daquele jeito meigo dela, me respondeu: “Cinema é legal mesmo! Fui a primeira vez no mês passado!”. Senti muita vontade de chorar por minha falta de sensibilidade. K. contava seus vinte anos na época, o que significa que ela passara duas décadas sem um dos itens da minha fórmula da vida feliz. Nem digo nada sobre livros...

Naquele mesmo dia, por coincidência, ela quis muito conversar. Convidei-a para um lanche, por minha conta, obviamente, mas ela recusou porque precisava preparar o jantar. Ofereci-me para ajudar a fazer o arroz e, com isso, conheci a casa onde ela morava de favor com uma senhora de 70 anos, empregada doméstica desde que tem lembrança, que, como é de se esperar, não tem condições de se aposentar. No lar simples, faltava tudo o que eu nem percebo que tenho. Na minha listinha, eu jamais me lembraria de escrever ‘água encanada’...

Muita gente cansa de ouvir tais histórias, que já viraram banais. Mas é muito diferente ver, vivenciar. Lembrei de um dia, numa festa no Rio Scenarium, de chopp custando 5 reais, em que a Lili abaixou a cabeça na mesa, de tristeza por pensar que nenhum dos alunos dela poderia estar ali, na Lapa antes tão marginal e, por isso, outrora tão “inclusiva”, em certo sentido.

Um dos tantos textos que me chama atenção na Bíblia é um Salmo, em que Deus fala para Davi que a verdadeira paz de uma certa cidade viria com a prosperidade das vizinhas. Sei que não cometo um crime social quando decido assistir a duas sessões de cinema por semana, mas queria muito que meu prazer fosse amplamente compartilhado. O cristianismo tem como símbolo uma mesa de comunhão, onde compartilha-se, antes de mais nada. De pão e vinho; de saciar, mas também de abundância em alegria. Como disse Frei Betto, o ser humano tem fome de pão e de beleza.

Agora, meu contato é com os meninos da Grota que, além de viverem na ausência do básico, como a K. do Preventório, ainda experimentam a violência diária do tráfico de drogas. Na segunda-feira passada, numa dinâmica com a turma, a Lili e eu perguntamos se desejavam um jornal em que eles mesmos pudessem se expressar acerca da realidade que ninguém de fora conhece melhor. Para nossa surpresa, não acham uma boa idéia. “Fotografar e escrever com os caras de fuzil na mão, tia?”.

Minha lista para a felicidade suprema ganhou muitos acréscimos. Acho que nunca serei plenamente feliz, mas minha paz interior guarda uma relação diretamente proporcional à minha capacidade de não me conformar e ao desejo de agir. Enquanto isso, sigo buscando. Há trabalho para duas vidas, mas espero que pelo menos uma valha à pena.

Algo sobre muito pouco

Por conta das minhas recentes digestões acerca de overdoses informacionais e da pergunta que finalizou meu último post, decidi falar a respeito daquilo que mais me remete a excesso: falta.

Uma vez me interroguei sobre as três coisas essenciais que me fariam feliz e sem as quais não poderia viver. Pensei em amados amigos (entre os quais incluo os amantes), livros e cinema. Depois disso, fiquei toda prosa de ter conseguido excluir das minhas essencialidades algo tão fundamental quanto viajar, por exemplo. Analisei bem, por fim concluí que dá sim para viver sem as sonhadas andanças, e ainda lembrei da citação budista: “o que não está bom aqui, não estará bom lá”.

Orgulhosa da minha renúncia a "quase todos" os prazeres, caí na besteira de mencionar isso para uma ex-aluna, do tempo das aulas voluntárias de inglês no morro do Preventório. K., daquele jeito meigo dela, me respondeu: “Cinema é legal mesmo! Fui a primeira vez no mês passado!”. Senti muita vontade de chorar por minha falta de sensibilidade. K. contava seus vinte anos na época, o que significa que ela passara duas décadas sem um dos itens da minha fórmula da vida feliz. Nem digo nada sobre livros...

Naquele mesmo dia, por coincidência, ela quis muito conversar. Convidei-a para um lanche, por minha conta, obviamente, mas ela recusou porque precisava preparar o jantar. Ofereci-me para ajudar a fazer o arroz e, com isso, conheci a casa onde ela morava de favor com uma senhora de 70 anos, empregada doméstica desde que tem lembrança, que, como é de se esperar, não tem condições de se aposentar. No lar simples, faltava tudo o que eu nem percebo que tenho. Na minha listinha, eu jamais me lembraria de escrever ‘água encanada’...

Muita gente cansa de ouvir tais histórias, que já viraram banais. Mas é muito diferente ver, vivenciar. Lembrei de um dia, numa festa no Rio Scenarium, de chopp custando 5 reais, em que a Lili abaixou a cabeça na mesa, de tristeza por pensar que nenhum dos alunos dela poderia estar ali, na Lapa antes tão marginal e, por isso, outrora tão “inclusiva”, em certo sentido.

Um dos tantos textos que me chama atenção na Bíblia é um Salmo, em que Deus fala para Davi que a verdadeira paz de uma certa cidade viria com a prosperidade das vizinhas. Sei que não cometo um crime social quando decido assistir a duas sessões de cinema por semana, mas queria muito que meu prazer fosse amplamente compartilhado. O cristianismo tem como símbolo uma mesa de comunhão, onde compartilha-se, antes de mais nada. De pão e vinho; de saciar, mas também de abundância em alegria. Como disse Frei Betto, o ser humano tem fome de pão e de beleza.

Agora, meu contato é com os meninos da Grota que, além de viverem na ausência do básico, como a K. do Preventório, ainda experimentam a violência diária do tráfico de drogas. Na segunda-feira passada, numa dinâmica com a turma, a Lili e eu perguntamos se desejavam um jornal em que eles mesmos pudessem se expressar acerca da realidade que ninguém de fora conhece melhor. Para nossa surpresa, não acham uma boa idéia. “Fotografar e escrever com os caras de fuzil na mão, tia?”.

Minha lista para a felicidade suprema ganhou muitos acréscimos. Acho que nunca serei plenamente feliz, mas minha paz interior guarda uma relação diretamente proporcional à minha capacidade de não me conformar e ao desejo de agir. Enquanto isso, sigo buscando. Há trabalho para duas vidas, mas espero que pelo menos uma valha à pena.

segunda-feira, abril 18, 2005

História de quem não tem história para contar

Decidi não me levar tão à sério, já faz um tempo, mas a realização disto não vem de um dia para o outro. É preciso dedicação. Hoje dei um passo adiante e fiz algo que há muito queria fazer: abordei um estranho na rua e pedi para ele me contar sobre sua vida.

Foi nas Barcas, indo para Niterói. Prestei atenção nele quando ainda estávamos na Estação. De costas, achei que fosse o João, apesar de saber que jamais o veria ali. De rosto parecia o irmão gêmeo do Rodrigo Santoro. É necessário dizer que ele era lindo? Pois era.

A barca chegou, peguei o meu café, acendi um cigarro. Entrei, busquei um lugar do lado de fora, nos banquinhos do segundo andar, ele também. Minha curiosidade aumentou, pois não é de hoje que observo os que viajam sozinhos naquele canto. Ainda mais porque tinha chovido e o dia estava nublado, o que sempre afasta os passageiros dali.

Engraçado como eu estava me sentindo outra pessoa, um pouco personagem, não só por estar fumando, mas também por conta do cabelo preso, boné e óculos escuros – eu devia ter uns dez anos na última vez que usei um boné. Tirando proveito do disfarce de mim mesma, apaguei o cigarro, terminei meu café, criei coragem, saí do meu lugar e sentei do lado dele. Disse que eu era escritora (esta parte dá até vergonha de contar. Além da piada em si, não poderia haver caracterização mais esdrúxula e figurino menos condizente). Perguntei se ele se importava de ser meu personagem para uma história. Não havia problema algum, me disse, mas quis saber o que era preciso fazer. "Basta que conversemos e você me conte algo sobre sua vida", respondi.

Seu nome é Júlio e de perto consegue ser ainda mais bonito. Das primeiras coisas que me contou: já chamaram-no, mais de uma vez, de João na rua. Ri e quis saber se o achavam parecido com alguém famoso. A semelhança com o Rodrigo Santoro é mesmo o comentário mais freqüente. Se ele tira proveito disso? Que nada. Quieto, não sai muito à noite, prefere o dia. Namora há 2 anos e sete meses, se diz apaixonado. Os dois já se conheciam há um certo tempo, eram amigos. Ela está começando a faculdade de cinema e estuda exatamente onde estudei. Isso me assustou no início, confesso. Medo de ser desmascarada, com certeza. E mais, dela pensar que eu estava dando uma cantada no Júlio.

Não seria algo absurdo de se pensar, mas eu jamais agiria assim se o objetivo fosse uma conquista. Além disso, ele é menino demais. E bonito demais. Acho que os belos se acomodam, quase nunca são os mais engraçados ou mais charmosos, nem têm o jeito de falar mais interessante. Isso quando a voz não é um desastre. Nem é o caso, a voz do Júlio é bem bacana. O sorriso é uma graça, mas meio tímido, ou simplesmente reservado, o que é de se esperar se levarmos em conta a forma como aconteceu a conversa.

Seu jeito de se vestir despojado não chega a ser ousado. Tem 22 anos, cursa veterinária e acabou de conseguir a transferência para a Uenf. Não costuma conversar com bichos, só com os seus próprios. Ele é dono de sete cachorros, de raças variadas que não lembro agora, apenas um é "mestiço". Aliás, aprendi que cão vira-lata, em termos técnicos, é SRD, sigla para "Sem Raça Definida". Enquanto não pode exercer a profissão, trabalha na construtora que o pai administra. Todos dizem que é teimoso, e ele concorda. Briga pelo que acredita, mas nunca discute com outros teimosos. Nunca andou a cavalo e quer trabalhar com animais silvestres, provavelmente para o Ibama.

O que mais me chamou a atenção é que Júlio diz que não tem histórias para contar, não lembra de "causos" da infância, de nenhum trauma por causa da morte de um bichano. Apesar de teimoso, jamais protagonizou uma discussão memorável. Nunca recebeu um apelido dos amigos, nem mesmo na capoeira (jamais tive notícia de um capoeirista sem apelido), que praticou durante dois anos, tendo parado por complicações no joelho. Júlio atribui isso à inexistência de quaisquer feitos que fugissem da normalidade. Talvez, na verdade, não tenha querido me contar suas histórias, por reserva, o que seria compreensível. Mas não concebo a idéia de que alguém fale tanto da própria vida com uma estranha, em condições ainda mais estranhas, e tenha receio de revelar as caras lembranças. Pouco antes de nos despedirmos, perguntei se imaginava o que eu escreveria sobre ele. Deu de ombros. Nem desconfiava.

Percebeu, Julio, que agora sei de uma história sua? Você tem uma história para contar e eu fui a primeira a saber. Espero que faça bom proveito dela. Eu não a desperdiçaria.

História de quem não tem história para contar

Decidi não me levar tão à sério, já faz um tempo, mas a realização disto não vem de um dia para o outro. É preciso dedicação. Hoje dei um passo adiante e fiz algo que há muito queria fazer: abordei um estranho na rua e pedi para ele me contar sobre sua vida.

Foi nas Barcas, indo para Niterói. Prestei atenção nele quando ainda estávamos na Estação. De costas, achei que fosse o João, apesar de saber que jamais o veria ali. De rosto parecia o irmão gêmeo do Rodrigo Santoro. É necessário dizer que ele era lindo? Pois era.

A barca chegou, peguei o meu café, acendi um cigarro. Entrei, busquei um lugar do lado de fora, nos banquinhos do segundo andar, ele também. Minha curiosidade aumentou, pois não é de hoje que observo os que viajam sozinhos naquele canto. Ainda mais porque tinha chovido e o dia estava nublado, o que sempre afasta os passageiros dali.

Engraçado como eu estava me sentindo outra pessoa, um pouco personagem, não só por estar fumando, mas também por conta do cabelo preso, boné e óculos escuros – eu devia ter uns dez anos na última vez que usei um boné. Tirando proveito do disfarce de mim mesma, apaguei o cigarro, terminei meu café, criei coragem, saí do meu lugar e sentei do lado dele. Disse que eu era escritora (esta parte dá até vergonha de contar. Além da piada em si, não poderia haver caracterização mais esdrúxula e figurino menos condizente). Perguntei se ele se importava de ser meu personagem para uma história. Não havia problema algum, me disse, mas quis saber o que era preciso fazer. "Basta que conversemos e você me conte algo sobre sua vida", respondi.

Seu nome é Júlio e de perto consegue ser ainda mais bonito. Das primeiras coisas que me contou: já chamaram-no, mais de uma vez, de João na rua. Ri e quis saber se o achavam parecido com alguém famoso. A semelhança com o Rodrigo Santoro é mesmo o comentário mais freqüente. Se ele tira proveito disso? Que nada. Quieto, não sai muito à noite, prefere o dia. Namora há 2 anos e sete meses, se diz apaixonado. Os dois já se conheciam há um certo tempo, eram amigos. Ela está começando a faculdade de cinema e estuda exatamente onde estudei. Isso me assustou no início, confesso. Medo de ser desmascarada, com certeza. E mais, dela pensar que eu estava dando uma cantada no Júlio.

Não seria algo absurdo de se pensar, mas eu jamais agiria assim se o objetivo fosse uma conquista. Além disso, ele é menino demais. E bonito demais. Acho que os belos se acomodam, quase nunca são os mais engraçados ou mais charmosos, nem têm o jeito de falar mais interessante. Isso quando a voz não é um desastre. Nem é o caso, a voz do Júlio é bem bacana. O sorriso é uma graça, mas meio tímido, ou simplesmente reservado, o que é de se esperar se levarmos em conta a forma como aconteceu a conversa.

Seu jeito de se vestir despojado não chega a ser ousado. Tem 22 anos, cursa veterinária e acabou de conseguir a transferência para a Uenf. Não costuma conversar com bichos, só com os seus próprios. Ele é dono de sete cachorros, de raças variadas que não lembro agora, apenas um é "mestiço". Aliás, aprendi que cão vira-lata, em termos técnicos, é SRD, sigla para "Sem Raça Definida". Enquanto não pode exercer a profissão, trabalha na construtora que o pai administra. Todos dizem que é teimoso, e ele concorda. Briga pelo que acredita, mas nunca discute com outros teimosos. Nunca andou a cavalo e quer trabalhar com animais silvestres, provavelmente para o Ibama.

O que mais me chamou a atenção é que Júlio diz que não tem histórias para contar, não lembra de "causos" da infância, de nenhum trauma por causa da morte de um bichano. Apesar de teimoso, jamais protagonizou uma discussão memorável. Nunca recebeu um apelido dos amigos, nem mesmo na capoeira (jamais tive notícia de um capoeirista sem apelido), que praticou durante dois anos, tendo parado por complicações no joelho. Júlio atribui isso à inexistência de quaisquer feitos que fugissem da normalidade. Talvez, na verdade, não tenha querido me contar suas histórias, por reserva, o que seria compreensível. Mas não concebo a idéia de que alguém fale tanto da própria vida com uma estranha, em condições ainda mais estranhas, e tenha receio de revelar as caras lembranças. Pouco antes de nos despedirmos, perguntei se imaginava o que eu escreveria sobre ele. Deu de ombros. Nem desconfiava.

Percebeu, Julio, que agora sei de uma história sua? Você tem uma história para contar e eu fui a primeira a saber. Espero que faça bom proveito dela. Eu não a desperdiçaria.

terça-feira, abril 12, 2005

Anticlímax em escala industrial

Já não somos mais tão românticos quanto antes e encontro uma boa explicação para isso: criaram a indústria do anticlímax.

Lembro bem que na minha infância, e também na pré-adolescência, eu me reunia com as amigas do prédio pra escutar música. Às vezes, precisávamos dividir o fone do Walkman. Recordo-me até de uma regra criada certa vez: quando tocasse na rádio a música preferida de uma, as outras deveriam ceder o fone para que o prazer fosse integral. Coincidentemente, as preferências não causavam conflito: Cristiane queria ouvir Spanish Eyes da Madonna, Dani era louca pelo relançado Twist and Shout dos Beatles, e eu ficava alucinada com Astronauta de Mármore do Nenhum de Nós.

Nas matinês das discotecas havia sempre o ponto máximo, quando tocava, uma única vez, aquela música tão esperada. Já cheguei a imaginar mil situações que poderiam acontecer naquele limitado espaço de tempo, entre o começar e terminar das notas. Assim era com Pride, Your Love, Brake Away. É engraçado como muitas perderam o encanto depois que aprendi inglês.

Como meus pais não cediam facilmente às minhas urgências de consumo, não tive muitos vinis nem K7s. Restavam minhas compilações caseiras e nelas a música sempre era estragada com a vinheta da rádio no meio, quando não havia o chiado da antiga sintonização analógica.

No entanto, os CD’s se popularizaram e descobrimos inúmeras possibilidades: não ter que trocar o lado, excluir da seleção faixas não tão gostadas e o que é, pra mim, o requinte da crueldade: o botão repeat. Claro que com meus K7s eu também podia voltar a música quantas vezes quisesse. Mas nunca com a mesma precisão e conforto do repeat. Como fiz mau uso dele... meus vizinhos que o digam – apesar de que também sou testemunha auricular dos excessos de repeat dos meus vizinhos.

Depois, o MP3 acabou até com o êxtase da aquisição, além de ter nos possibilitado o mundo perfeito onde nem nos preocupamos em excluir o que não agrada - basta não baixar! Isso sem falar no assassínio maior do clímax que é o aparelho de DVD. Com um botão ficamos à vontade pra usufruir até o desgaste do que antes fora eternizado nas saudosas lembranças. Todos livres para fazer da cena perfeita um retalho desgarrado e sem valor.

Sempre penso na frase de um filósofo muito citado pelo Edson (e que não me ocorre o nome): “Nada mais enfadonho que uma sucessão de dias de céu azul”. Estou absolutamente de acordo. Minha percepção é sensível a contrastes e sou feita de desníveis – e não é assim com todos nós? Sem falar que é muito gostoso descobrir beleza também no cinza, na chuva, na espera. Na morte que significa prenúncio de ressurreição.

Transformar tudo em prazer é aniquilar o orgasmo. Longe de mim compor uma ode ao sofrimento, apenas sou afeita ao que entendo por completude. Nada pode ser mais medíocre que a vontade de viver em eterna festa. Os meus momentos felizes quero-os muito distantes do botão repeat. Minhas melhores cenas não estão disponíveis em DVD. Não pude gravar as conversas mais engraçadas com os amigos, mas guardo a sensação do riso. As melhores fotografias estão armazenadas na memória, só não sei até quando, porque um dia elas também vão perder a cor.

Euforia eternamente repetida é normalidade mal vivida. Decididamente não quero isso pra mim.

Anticlímax em escala industrial

Já não somos mais tão românticos quanto antes e encontro uma boa explicação para isso: criaram a indústria do anticlímax.

Lembro bem que na minha infância, e também na pré-adolescência, eu me reunia com as amigas do prédio pra escutar música. Às vezes, precisávamos dividir o fone do Walkman. Recordo-me até de uma regra criada certa vez: quando tocasse na rádio a música preferida de uma, as outras deveriam ceder o fone para que o prazer fosse integral. Coincidentemente, as preferências não causavam conflito: Cristiane queria ouvir Spanish Eyes da Madonna, Dani era louca pelo relançado Twist and Shout dos Beatles, e eu ficava alucinada com Astronauta de Mármore do Nenhum de Nós.

Nas matinês das discotecas havia sempre o ponto máximo, quando tocava, uma única vez, aquela música tão esperada. Já cheguei a imaginar mil situações que poderiam acontecer naquele limitado espaço de tempo, entre o começar e terminar das notas. Assim era com Pride, Your Love, Brake Away. É engraçado como muitas perderam o encanto depois que aprendi inglês.

Como meus pais não cediam facilmente às minhas urgências de consumo, não tive muitos vinis nem K7s. Restavam minhas compilações caseiras e nelas a música sempre era estragada com a vinheta da rádio no meio, quando não havia o chiado da antiga sintonização analógica.

No entanto, os CD’s se popularizaram e descobrimos inúmeras possibilidades: não ter que trocar o lado, excluir da seleção faixas não tão gostadas e o que é, pra mim, o requinte da crueldade: o botão repeat. Claro que com meus K7s eu também podia voltar a música quantas vezes quisesse. Mas nunca com a mesma precisão e conforto do repeat. Como fiz mau uso dele... meus vizinhos que o digam – apesar de que também sou testemunha auricular dos excessos de repeat dos meus vizinhos.

Depois, o MP3 acabou até com o êxtase da aquisição, além de ter nos possibilitado o mundo perfeito onde nem nos preocupamos em excluir o que não agrada - basta não baixar! Isso sem falar no assassínio maior do clímax que é o aparelho de DVD. Com um botão ficamos à vontade pra usufruir até o desgaste do que antes fora eternizado nas saudosas lembranças. Todos livres para fazer da cena perfeita um retalho desgarrado e sem valor.

Sempre penso na frase de um filósofo muito citado pelo Edson (e que não me ocorre o nome): “Nada mais enfadonho que uma sucessão de dias de céu azul”. Estou absolutamente de acordo. Minha percepção é sensível a contrastes e sou feita de desníveis – e não é assim com todos nós? Sem falar que é muito gostoso descobrir beleza também no cinza, na chuva, na espera. Na morte que significa prenúncio de ressurreição.

Transformar tudo em prazer é aniquilar o orgasmo. Longe de mim compor uma ode ao sofrimento, apenas sou afeita ao que entendo por completude. Nada pode ser mais medíocre que a vontade de viver em eterna festa. Os meus momentos felizes quero-os muito distantes do botão repeat. Minhas melhores cenas não estão disponíveis em DVD. Não pude gravar as conversas mais engraçadas com os amigos, mas guardo a sensação do riso. As melhores fotografias estão armazenadas na memória, só não sei até quando, porque um dia elas também vão perder a cor.

Euforia eternamente repetida é normalidade mal vivida. Decididamente não quero isso pra mim.

quarta-feira, abril 06, 2005

Cachaça com cianureto, por favor!

No fim da aula, a professora pede para eu esperar. É perigoso andar pela rua às dez da noite. Vamos para o mesmo lado, uma acompanha a outra, se é que isso serve de alguma coisa. Não deve mesmo servir. Não serve. Mas deixa pra lá. Quase chegando no ponto de ônibus, barulho de tiros. Muitos tiros. Continuamos andando, então o barulho ficou muito próximo. A minha única reação foi me esconder atrás da professora. Isso mesmo. Eu quis evitar uma bala perdida lançando mão de um escudo humano, a minha professora de Ética. Cena patética, eu fugindo dos tiros. Rimei ética com patética, sem querer. Sem querer, mas rimei. Minha ética deve ser patética. É, já sei. Por que uma bala daquela não me acertou? Eu já morri de vergonha... Imagina se uma bala me acerta? Coitada da professora, que seria obrigada a lamentar.

Carrego uma culpa. Certa vez um professor foi assaltado porque parou para me dar carona. Levaram carro importado, relógio caríssimo e uma boa grana. De mim nada. Três alunas perderam suas bolsas. Comigo nada. Eu não perdi nada. Ganhei a certeza de que professor que anda comigo tem que, antes, andar com galho de arruda. E pé de coelho. E água benta. E figa. Duma figa...

A culpa duma figa já não basta. Agora a professora-escudo. Eu nunca basto. Desconcertada, tentei concertar. Teve jeito? Teve jeito. Só de piorar. Fiz que não ouvi nada, o medo passou. Foi embora junto com a indignação, com o senso crítico. Ficou a culpa. Se antes me protegi, fui tentar proteger: “Espero ônibus com você”. Mudei de assunto, violência não é nada. Nada? Que nada... Já morri, de mosca morta. E nem precisei ser baleada.

Acho que mereço ser reprovada em Ética. Se eu fosse a professora, era o que eu faria. Faria? Nada. Hoje eu perdôo de graça. Não que eu costume cobrar para perdoar. Eu sempre cobro de graça. Posturas que não tive. Mas hoje a misericórdia está em promoção. Porque eu nem consigo parar de rir. De rir por não existir, porque acho mesmo que morri. Morri de vergonha e, agora, morro de rir. Vocês não viram o que eu me vi...

Cachaça com cianureto, por favor!

No fim da aula, a professora pede para eu esperar. É perigoso andar pela rua às dez da noite. Vamos para o mesmo lado, uma acompanha a outra, se é que isso serve de alguma coisa. Não deve mesmo servir. Não serve. Mas deixa pra lá. Quase chegando no ponto de ônibus, barulho de tiros. Muitos tiros. Continuamos andando, então o barulho ficou muito próximo. A minha única reação foi me esconder atrás da professora. Isso mesmo. Eu quis evitar uma bala perdida lançando mão de um escudo humano, a minha professora de Ética. Cena patética, eu fugindo dos tiros. Rimei ética com patética, sem querer. Sem querer, mas rimei. Minha ética deve ser patética. É, já sei. Por que uma bala daquela não me acertou? Eu já morri de vergonha... Imagina se uma bala me acerta? Coitada da professora, que seria obrigada a lamentar.

Carrego uma culpa. Certa vez um professor foi assaltado porque parou para me dar carona. Levaram carro importado, relógio caríssimo e uma boa grana. De mim nada. Três alunas perderam suas bolsas. Comigo nada. Eu não perdi nada. Ganhei a certeza de que professor que anda comigo tem que, antes, andar com galho de arruda. E pé de coelho. E água benta. E figa. Duma figa...

A culpa duma figa já não basta. Agora a professora-escudo. Eu nunca basto. Desconcertada, tentei concertar. Teve jeito? Teve jeito. Só de piorar. Fiz que não ouvi nada, o medo passou. Foi embora junto com a indignação, com o senso crítico. Ficou a culpa. Se antes me protegi, fui tentar proteger: “Espero ônibus com você”. Mudei de assunto, violência não é nada. Nada? Que nada... Já morri, de mosca morta. E nem precisei ser baleada.

Acho que mereço ser reprovada em Ética. Se eu fosse a professora, era o que eu faria. Faria? Nada. Hoje eu perdôo de graça. Não que eu costume cobrar para perdoar. Eu sempre cobro de graça. Posturas que não tive. Mas hoje a misericórdia está em promoção. Porque eu nem consigo parar de rir. De rir por não existir, porque acho mesmo que morri. Morri de vergonha e, agora, morro de rir. Vocês não viram o que eu me vi...

quinta-feira, março 17, 2005

Holandês voador

Tu pouco sabes, desconheces João e Maria
Essa tua boca vazia, sem beijo é banguela
Mãos que nada agarram, pincel nem aquarela
Desta vida nem viu a solidão dos Buendía

Se tuas pernas não correm, como voas para mim?
Simples culpa sequer há para teus atos pueris
Apenas ensaias sorrisos menos que infantis
Aos tropeços te enroscas no calor tupiniquim

Quando chamo, tua resposta é de quem ouve
Bem sei, descobri, minha fala não te diz nada
A menos que nela reconheças a voz da amada
No versículo, teu rosto: Lucas quatro, dez, doze

Com teu corpo enrugado, por favor, venha aqui
De longe, guardo comigo todos os odores
Distante ensaio meus gestos, prevejo tuas cores
É hora, meu amor, de trocar a fralda de pipi

Holandês voador

Tu pouco sabes, desconheces João e Maria
Essa tua boca vazia, sem beijo é banguela
Mãos que nada agarram, pincel nem aquarela
Desta vida nem viu a solidão dos Buendía

Se tuas pernas não correm, como voas para mim?
Simples culpa sequer há para teus atos pueris
Apenas ensaias sorrisos menos que infantis
Aos tropeços te enroscas no calor tupiniquim

Quando chamo, tua resposta é de quem ouve
Bem sei, descobri, minha fala não te diz nada
A menos que nela reconheças a voz da amada
No versículo, teu rosto: Lucas quatro, dez, doze

Com teu corpo enrugado, por favor, venha aqui
De longe, guardo comigo todos os odores
Distante ensaio meus gestos, prevejo tuas cores
É hora, meu amor, de trocar a fralda de pipi

sexta-feira, março 04, 2005

Na morada dos entulhos


Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia entrar nela, não
Porque na casa não tinha chão
Ninguém podia dormir na rede
Porque na casa não tinha parede
Ninguém podia fazer pipi
Porque penico não tinha ali
Mas era feita com muito esmero
Na rua dos Bobos
Número zero
(A Casa, de Vinicius de Moraes)

Esta semana tive que procurar umas fotos de três anos atrás, de um ensaio que fiz para a aula de fotojornalismo sobre trabalho informal no Rio de Janeiro. Por conta disso, na segunda-feira dormi às cinco da manhã, revirei a casa inteira, e nada. Só encontrei mesmo no dia seguinte, mas, até que isso acontecesse, eu fui jogando muita coisa fora. Acho engraçado eu ter tanta tralha acumulada, já que limpo tudo com uma freqüência bastante razoável.

Gosto de abrir as janelas, limpar as gavetas, arrumar os armários, pois não consigo deixar de perceber nisso uma metáfora da minha própria condição. Tomo o exemplo recente: não é à toa que, depois de cinco anos de faculdade, eu tenha me desfeito de tantos trabalhos, cadernos, folhas fotocopiadas e redações. Porque um ciclo se completou. O jogar fora é um ato de escolha, quase sempre. E de autoconhecimento, de percepção sensível. De compreensão das próprias mudanças, de coragem para se desvencilhar do tanto que a dinâmica da vida exige. Seria falta de apego da minha parte? Não mesmo. Tenho extrema dificuldade com os bilhetinhos trocados nas salas de aula de dez, doze anos atrás. Eu queria, sim, era não me apegar tanto. E a grande questão são os objetos que só fazem sentido pra mim mesma.

O meu ex-namorado era um excelente ilustrador. Mas ele nunca me desenhava. Certa noite, em um restaurante que fica numa das esquinas que mais gosto, enquanto falávamos de arte, construção da realidade, fé e tanto mais, ele fez um desenho de nós dois no papel que forrava a bandeja. Então, pediu que eu escrevesse algo sobre aquele momento e, em seguida, propôs que fôssemos embora e deixássemos o desenho ali mesmo.

Era a primeira vez que eu era desenhada, não podia abrir mão daquilo! Mas ele, por fim, me convenceu ao contar a história dos budistas, que se dedicam durante um ano na confecção de mosaicos de areia que são, no fim, pisados e desmanchados por um dos monges. A idéia é que o impulso maior seja a crença em um fazer e refazer constante, sem que as obras daí decorrentes tornem-se armadilhas, motivos de contemplações vazias capazes de nos aprisionar.

Tendo virado as costas para uma das manifestações de carinho que mais me emocionara até então, confesso que nos divertimos ao imaginar o que seria feito do desenho quando fosse encontrado. A resposta veio em duas semanas: um casal de amigos almoçou no mesmo lugar, e daí tomamos conhecimento de que estava numa moldura, pendurado na parede do restaurante. Quando voltamos lá para ver, os funcionários me reconheceram por causa da própria ilustração e logo o gerente foi chamado, porque estavam todos, há dias, curiosos para saber quem eram os autores da brincadeira.

Um ano depois disso tudo ter acontecido, com nosso relacionamento tão desmanchado quanto os mosaicos de areia dos budistas, voltei lá e pedi para ver o quadro de novo. Só para dar uma espiada, já que não estava mais na parede, mas na sala da gerência. Quando souberam que não mais existia o casal representado naquele papel emoldurado, me deram o quadro de presente. E este foi um dos meus momentos de maior angústia... Comigo aquele desenho não significava coisa alguma, não contava mais histórias, não me trazia lembranças, não me falava de um passado. Porque jamais foi feito para ser meu. Mas, até hoje, ele continua lá, numa parede coadjuvante da minha casa, por onde pouco passo, sem qualquer função, pois ainda não consegui jogá-lo fora.

Apesar da disposição de me "arejar", minha casa ainda resta cheia dos meus entulhos. E não importa de quem seja a casa, é quase sempre assim. Minha casa, sua casa. Qualquer e toda casa. Casa de boneca, da infância, da imaginação. Habitação de lembranças e casulo de sonhos. Vivenda de sentimentos. Casa feita de doces, como a de João e Maria. Casa de marimbondo. Casa de muitas moradas, como a do Pai.

Em “Cem anos de solidão”, o lar dos Buendía não é apenas o cenário das tramas familiares. Cada nova alegria é materializada na casa, que se enche de luz, de borboletas, de jardins. E tudo floresce, respira, pulsa, vive. Mas, de tempos em tempos, ela também cheira a mofo, é invadida pelo mato crescido, pelos insetos que perambulam nas paredes rachadas.

Na época da Páscoa, os judeus ficam sete dias sem comer o que eles chamam de “hametz” - o fermento, que representa a impureza. A recomendação é bíblica: “Fermento não se achará contigo por sete dias, em todo o teu território” (Deuteronômio, 16:4). Mesmo nos dias de hoje, as famílias mais zelosas de suas tradições abrem a dispensa e queimam todo o fermento existente em suas casas. Como se não bastasse, usam louças especiais, que jamais tiveram contato com alimentos impuros. E as paredes de muitas casas recebem uma mão de tinta fresca a cada ano, como sinal de renovação.

Ainda na bíblia, outra passagem sobre a Páscoa e mais uma recomendação de Jeová: “Não oferecerás o sangue do meu sacrifício com pão levedado, nem ficará gordura da minha festa durante a noite até pela manhã” (Êxodo 23:18). Daí, penso que, talvez, o Deus do Antigo Testamento não estivesse tão preocupado com a impureza em si, mas com o ato de renovação. Apesar da festa e da alegria da véspera, nas minhas interpretações tortas ouço um conselho: o de esperarmos o amanhã varridos de certos acúmulos, alguns até provenientes dos momentos felizes. Para que nem essas mesmas alegrias sejam impedimento para que se siga em frente.