domingo, janeiro 22, 2006

Eu, por mim mesma - Tomo sétimo (e último)

"De todos os santos"

Eis que, então, lhe sobreveio a mensagem divina e ela compreendeu que deveria canonizar suas mágoas e transformá-las em milagres. Foi quando pensou nos homens de sua vida e constatou que eram todos santos. Conforme lhe segredara Deus em sonho, a eles devia sua miraculosa alquimia de transmutar lágrima em caminho.

Num papel, improviso de tábua da lei e de salvação, antecipadamente envelhecido por conhecer o peso de suas cruzes, ela compôs uma oração de graças às atuais, antigas e futuras gerações de seus homens santos.

Começou pelos que, devagar em verdes andores, simbolizavam o riso em sua vida: Santo Antonio – semente plantada e cultivada no seio da esperança por um mundo melhor – e São Lucas Mateus das terras calvinistas, doçura esculpida gente. A ambos ela devotara sua máxima ternura.

Em seguida, lembrou-se daqueles piedosos que sempre acudiam-na em momentos de elevadas aflições, bastando que, para isso, apenas fechasse os olhos; sem necessidade de juntar as mãos em reza ou fazer promessas de amor que ela jamais cumpriria. Então, entoou cânticos ao mais belo dos santos: salve São Marcos da Cachoeira, que a instruiu nos maravilhosos pecados da luxúria.

Assim, por igual motivo de prece atendida, ela também deu vivas a São João dos caroços rebeldes e brotos impossíveis, que fez germinar em seu coração mais esperança no porvir. Santo palavreiro que, com belos escritos e saudáveis vexames, reafirmou a missão de amá-la – incondicional, energética e libertariamente.

Das terras latinas de fé revolucionária, vieram-lhe duas imagens. A San Carlos de Puebla dedicou uma prece, pela crença cega que o distante santo nela depositara e pelos pergaminhos de profecia asteca que dele recebera. Por fim, ela derramou lágrimas bentas, emocionada com as providências de seu santo protetor: San Andrés de Medelín.

Escrevia a lista de seus santos homens santos e, pouco a pouco, deixava de ser a mulher de tormentosos prantos e metamorfoseava-se em virgem de luz, purificada após o flagelo. O amor, enfim, já não a castigava.

Sua última provação se deu no instante em que por ser escrito apenas um nome restava: o daquele que lhe impusera doídas penitências. Se ela sentia-se capaz de escrevê-lo? Duvidou com palavras. No entanto, como se de nada mais valessem, porque já desnecessárias, prevaleceu o impulso de seu misericordioso coração, que fez brotar magicamente no papel, em meio às luzes, com letras douradas, o nome que a havia feito cair endemoniada. Assim reescrito, significou alvíssaras. Boas novas do pequeno Santo Padre de Cuba, infalível em grandes milagres de contrariedade.

Teve pouco tempo para contemplar aquelas letras douradas. Ela já não pertencia a este mundo: virou Santa. Santa de Todos os Santos. Que foi crucificada, morta e esquartejada. Desceu ao barraco dos mortos. E ressuscitou ao sétimo tomo, depois de uma eternidade.

Eu, por mim mesma - Tomo sétimo (e último)

"De todos os santos"

Eis que, então, lhe sobreveio a mensagem divina e ela compreendeu que deveria canonizar suas mágoas e transformá-las em milagres. Foi quando pensou nos homens de sua vida e constatou que eram todos santos. Conforme lhe segredara Deus em sonho, a eles devia sua miraculosa alquimia de transmutar lágrima em caminho.

Num papel, improviso de tábua da lei e de salvação, antecipadamente envelhecido por conhecer o peso de suas cruzes, ela compôs uma oração de graças às atuais, antigas e futuras gerações de seus homens santos.

Começou pelos que, devagar em verdes andores, simbolizavam o riso em sua vida: Santo Antonio – semente plantada e cultivada no seio da esperança por um mundo melhor – e São Lucas Mateus das terras calvinistas, doçura esculpida gente. A ambos ela devotara sua máxima ternura.

Em seguida, lembrou-se daqueles piedosos que sempre acudiam-na em momentos de elevadas aflições, bastando que, para isso, apenas fechasse os olhos; sem necessidade de juntar as mãos em reza ou fazer promessas de amor que ela jamais cumpriria. Então, entoou cânticos ao mais belo dos santos: salve São Marcos da Cachoeira, que a instruiu nos maravilhosos pecados da luxúria.

Assim, por igual motivo de prece atendida, ela também deu vivas a São João dos caroços rebeldes e brotos impossíveis, que fez germinar em seu coração mais esperança no porvir. Santo palavreiro que, com belos escritos e saudáveis vexames, reafirmou a missão de amá-la – incondicional, energética e libertariamente.

Das terras latinas de fé revolucionária, vieram-lhe duas imagens. A San Carlos de Puebla dedicou uma prece, pela crença cega que o distante santo nela depositara e pelos pergaminhos de profecia asteca que dele recebera. Por fim, ela derramou lágrimas bentas, emocionada com as providências de seu santo protetor: San Andrés de Medelín.

Escrevia a lista de seus santos homens santos e, pouco a pouco, deixava de ser a mulher de tormentosos prantos e metamorfoseava-se em virgem de luz, purificada após o flagelo. O amor, enfim, já não a castigava.

Sua última provação se deu no instante em que por ser escrito apenas um nome restava: o daquele que lhe impusera doídas penitências. Se ela sentia-se capaz de escrevê-lo? Duvidou com palavras. No entanto, como se de nada mais valessem, porque já desnecessárias, prevaleceu o impulso de seu misericordioso coração, que fez brotar magicamente no papel, em meio às luzes, com letras douradas, o nome que a havia feito cair endemoniada. Assim reescrito, significou alvíssaras. Boas novas do pequeno Santo Padre de Cuba, infalível em grandes milagres de contrariedade.

Teve pouco tempo para contemplar aquelas letras douradas. Ela já não pertencia a este mundo: virou Santa. Santa de Todos os Santos. Que foi crucificada, morta e esquartejada. Desceu ao barraco dos mortos. E ressuscitou ao sétimo tomo, depois de uma eternidade.

terça-feira, janeiro 10, 2006

Eu, por mim mesma - Tomo sexto

"Portariando na conversaria"

Uma hora e meia de conversa, depois de quase dois anos. Cheguei ainda atormentada naquele prédio, daquele bairro onde tudo acontece em poucas quadras, mas logo me sobreveio um interlúdio de luz. Eu senti uma paz de morto. Não, não me refiro a um sentimento pesado, fúnebre. É que, pela primeira vez, pensei como velho. Aliás, com tanta juventude, nunca havia me preocupado com o fato de que velhos e jovens pensam diferente demais, simplesmente porque, em essência, é assim que deve ser. Não apenas porque as épocas passam deixando pra trás gostos antigos que, aos poucos, dão lugar às tantas modernidades que também envelhecerão. É que muda o jeito de sonhar.

Como jovem, já sonhei com ter amores, ter vida linda a dois, ter filhos, ter construção constante de mais vida, de mais que a dois. Pulsante, sorridente, problemática, florida, complicada, mas, acima de tudo, vida. Ter. E ali, de repente, me vi apenas feliz. Por tudo o que eu construí um dia. Não mais ansiosa por ter, mas grata pelo tido. Coisa de velho que vai morrer. Que sabe que o tempo de sonhar já anda curto, e por isso mais agradece. Missão cumprida.

Naquela hora e meia, tudo fez sentido. Eu, que nunca entendi por que a gente ama tanto pra acabar, compreendi finalmente que algumas reações de amor, desencadeadas, explodem no infinito, pra salpicar o universo. Ejaculação de um aparente caos que engravida o cosmo e gera beleza. Porque “a beleza salvará o mundo”.

Amor que fecunda a alma, ramifica e vai longe. Esse, pensava, foi pra longe de mim. Doeu um dia. Mas, naquela noite de Natal, com minha cabeça de velho que vai morrer, aliviada constatei que meu amor foi dar em outros lugares e saiu amando por aí.

Ao “autor da frase” dediquei as maiores merdas dos últimos dois anos, porque as fiz com o intuito (agora sei) de experimentar um eu diferente, pra me livrar daquele eu que o amara. Como vivi... Dediquei a ele os maiores porres e o primeiro baseado. O primeiro orgasmo sem amor. A primeira lágrima pela falta de amor, apesar do orgasmo. Dediquei-lhe tantos dos meus escritos (muitos aqui jazem arquivados). E tanto mais... Dediquei-lhe, por fim, o momento em que me enchi de querer provar que eu podia ser diferente, porque afinal eu já não era mais quem fora. Surpresa constatar que hoje sou tão ele. Ele é tão eu. Nós nos confundimos. Entranhou, apesar de passado. Mal-passado? Bem-passado. Agora passado a limpo. Porque tempo reescreve, a gente relê. Fica feliz quem quer, quem sabe como. Porque, sempre digo, mesmo os maus momentos rendem boas histórias.

Durante aquela conversa de portaria, fez muito sentido amar. Não para se ter algo, mas para engravidar o mundo de beleza. Eu senti muito orgulho porque um dia dediquei tanto amor a um cara tão bacana. Simples assim.

Mas por que, afinal, a ligação para o “autor da frase”, quando dei de cara com o “último absoluto” acompanhado na noite de Natal?

As minhas duas histórias de amores contrariados se entrecruzaram aqui e, por isso, logo me veio uma idéia: escrever seis dos sete tomos previstos, ligar para o “autor da frase”, marcar um encontro e mostrar-lhe os escritos. O sétimo tomo, então, versaria sobre esse imaginado reencontro, as impressões do “autor da frase” e a nossa conversa nesse dia presumivelmente inusitado. Mas a vida tratou de fazer graça com minha miudeza e foi bem mais criativa que eu...

Agora sim entendo o texto profético de Guimarães Rosa, que jamais antes me parecera tão pleno de sentido: "A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação - porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada..."

Depois da noite de Natal, ainda veio o Réveillon. Festa no meio da multidão, música, banho de mar com roupa e tudo. Iemanjá abençoou. Eu agradeci porque ainda vivi pra vê-lo mais feliz, mais bonito, mais bêbado e mais dançante que nunca. Eu, tão jovem, dancei – mais feliz, mais bonita, mais bêbada, mais muito que meu antes com ele. Eu, tão velha moribunda, pensei que, hoje, talvez tivesse medo de estragar esse ele tão melhor que aquele nós.

Daqui a dois dias, faz dois anos que tudo terminou. Daqui a dois dias mais dois, ele completa dois anos mais do que tinha quando tudo terminou. Natal, Réveillon, aniversário de fim, anos de vida. Muitos motivos para homenagens e recomeços. Se amigos? Não digo “apenas” porque é muito. Porque é muito bonito. Porque, pela primeira vez, penso que tenho um motivo para morrer em paz.

Eu, por mim mesma - Tomo sexto

"Portariando na conversaria"

Uma hora e meia de conversa, depois de quase dois anos. Cheguei ainda atormentada naquele prédio, daquele bairro onde tudo acontece em poucas quadras, mas logo me sobreveio um interlúdio de luz. Eu senti uma paz de morto. Não, não me refiro a um sentimento pesado, fúnebre. É que, pela primeira vez, pensei como velho. Aliás, com tanta juventude, nunca havia me preocupado com o fato de que velhos e jovens pensam diferente demais, simplesmente porque, em essência, é assim que deve ser. Não apenas porque as épocas passam deixando pra trás gostos antigos que, aos poucos, dão lugar às tantas modernidades que também envelhecerão. É que muda o jeito de sonhar.

Como jovem, já sonhei com ter amores, ter vida linda a dois, ter filhos, ter construção constante de mais vida, de mais que a dois. Pulsante, sorridente, problemática, florida, complicada, mas, acima de tudo, vida. Ter. E ali, de repente, me vi apenas feliz. Por tudo o que eu construí um dia. Não mais ansiosa por ter, mas grata pelo tido. Coisa de velho que vai morrer. Que sabe que o tempo de sonhar já anda curto, e por isso mais agradece. Missão cumprida.

Naquela hora e meia, tudo fez sentido. Eu, que nunca entendi por que a gente ama tanto pra acabar, compreendi finalmente que algumas reações de amor, desencadeadas, explodem no infinito, pra salpicar o universo. Ejaculação de um aparente caos que engravida o cosmo e gera beleza. Porque “a beleza salvará o mundo”.

Amor que fecunda a alma, ramifica e vai longe. Esse, pensava, foi pra longe de mim. Doeu um dia. Mas, naquela noite de Natal, com minha cabeça de velho que vai morrer, aliviada constatei que meu amor foi dar em outros lugares e saiu amando por aí.

Ao “autor da frase” dediquei as maiores merdas dos últimos dois anos, porque as fiz com o intuito (agora sei) de experimentar um eu diferente, pra me livrar daquele eu que o amara. Como vivi... Dediquei a ele os maiores porres e o primeiro baseado. O primeiro orgasmo sem amor. A primeira lágrima pela falta de amor, apesar do orgasmo. Dediquei-lhe tantos dos meus escritos (muitos aqui jazem arquivados). E tanto mais... Dediquei-lhe, por fim, o momento em que me enchi de querer provar que eu podia ser diferente, porque afinal eu já não era mais quem fora. Surpresa constatar que hoje sou tão ele. Ele é tão eu. Nós nos confundimos. Entranhou, apesar de passado. Mal-passado? Bem-passado. Agora passado a limpo. Porque tempo reescreve, a gente relê. Fica feliz quem quer, quem sabe como. Porque, sempre digo, mesmo os maus momentos rendem boas histórias.

Durante aquela conversa de portaria, fez muito sentido amar. Não para se ter algo, mas para engravidar o mundo de beleza. Eu senti muito orgulho porque um dia dediquei tanto amor a um cara tão bacana. Simples assim.

Mas por que, afinal, a ligação para o “autor da frase”, quando dei de cara com o “último absoluto” acompanhado na noite de Natal?

As minhas duas histórias de amores contrariados se entrecruzaram aqui e, por isso, logo me veio uma idéia: escrever seis dos sete tomos previstos, ligar para o “autor da frase”, marcar um encontro e mostrar-lhe os escritos. O sétimo tomo, então, versaria sobre esse imaginado reencontro, as impressões do “autor da frase” e a nossa conversa nesse dia presumivelmente inusitado. Mas a vida tratou de fazer graça com minha miudeza e foi bem mais criativa que eu...

Agora sim entendo o texto profético de Guimarães Rosa, que jamais antes me parecera tão pleno de sentido: "A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação - porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada..."

Depois da noite de Natal, ainda veio o Réveillon. Festa no meio da multidão, música, banho de mar com roupa e tudo. Iemanjá abençoou. Eu agradeci porque ainda vivi pra vê-lo mais feliz, mais bonito, mais bêbado e mais dançante que nunca. Eu, tão jovem, dancei – mais feliz, mais bonita, mais bêbada, mais muito que meu antes com ele. Eu, tão velha moribunda, pensei que, hoje, talvez tivesse medo de estragar esse ele tão melhor que aquele nós.

Daqui a dois dias, faz dois anos que tudo terminou. Daqui a dois dias mais dois, ele completa dois anos mais do que tinha quando tudo terminou. Natal, Réveillon, aniversário de fim, anos de vida. Muitos motivos para homenagens e recomeços. Se amigos? Não digo “apenas” porque é muito. Porque é muito bonito. Porque, pela primeira vez, penso que tenho um motivo para morrer em paz.