sábado, fevereiro 26, 2005

Apaixonados pelo consumo dos corpos

Faz um tempinho desde a última vez que me apaixonei. Tudo começou na quarta-feira seguinte ao dia de Santo Antônio, que no ano passado caiu num domingo. Não tenho muita intimidade com a tradição católica, o que é uma pena. Mas meu pai, que sabe da vida de todos os santos, não perdeu a oportunidade de me dar um pãozinho de Santo Antônio, para ver se o casamenteiro lá dava um jeito na minha solteirice.

Naquela quarta-feira, eu estava na sala de reuniões quando alguém chegou no escritório. Pela porta de vidro translúcido, vi que era um estranho, ninguém da equipe. Quer dizer, estranho para mim, porque vi também que ele começou a conversar com a minha chefa, deixando as cadeiras de lado e sentando em uma das mesas. Achei aquilo esquisito, tanta intimidade num ambiente tão formal, com alguém mais formal ainda.

Intrigada, continuei prestando atenção. Claro que não dava pra ouvir nada, nem pra ver direito, só uma silhueta. E nessa de observar a silhueta, achei interessante os gestos dele, a maneira de mexer as mãos, de virar o rosto, que era, até aquele momento, nada além de um borrão. Eu tenho mesmo dessas coisas. Com a minha miopia aprendi a não depender tanto da imagem em si, porque o movimento das pessoas pode ser uma boa pista, talvez ainda mais marcante, mais incontestável.

Restava saber como era o rosto, porque também sou fascinada por detalhes, e costumo me saber gostando por causa de sorrisos e de olhares. Antes que eu pudesse descobrir por conta própria, Naná, a moça que servia o café, veio da cozinha, passou pela “silhueta” e entrou com a bandeja na sala de reuniões. Olhei para ela e em dois segundos entendi que o estranho, e pelo visto não só a silhueta, tinha agradado a mais alguém. Naná chegou pertinho de mim, na hora que estava colocando café na minha xícara, e falou, baixinho, pra ninguém ouvir nem perceber: “Mona, que bofe...”.

Afinal, soube que o “bofe” era o outro filho do dono da empresa. Acabara de chegar dos Estados Unidos, de Harvard, mais especificamente. Voltei para minha mesa, ele veio se apresentar. Foi só o cara virar as costas para eu escrever um e-mail: “Amiga, acho que o pãozinho de Santo Antônio funciona. Conheci o homem da minha vida: interessante, gato, usa o 212 da Carolina Herrera. Se veste bem, é descolado, estiloso, não é do tipo formal. O único problema é que tem uma pós-graduação em Harvard, o que agiganta as chances dele ser um grande pela-saco. Mas acho melhor não exigir muito do Santo, que, estou sentindo, resolveu caprichar...”.

Ele estava trabalhando em um projeto grande e, enquanto não tinha um escritório próprio, ficou usando o do pai. Daí, veio um convívio quase que diário, apesar de bem tímido. E eu, que tinha passado os seis meses anteriores de luto pelo término de uma relação falida, comemorei cada friozinho na barriga nas vezes que ele vinha na minha mesa puxar assunto. Indícios, finalmente, da minha libertação do passado recente.

Foram meses até que, por fim, marcamos um chope. Mas, com imprevistos e compromissos dos dois lados, só conseguimos nos encontrar depois de mais uns tantos meses, quando fui trabalhar em outro lugar e fiquei mais à vontade, porque sair com filho do chefão é muita furada. Com isso, se nos conhecemos naquela quarta-feira de junho, o primeiro encontro mesmo foi só no princípio de outubro. E eu já estava muito feliz, por tudo o que aquilo representava, pelos sopros de novidade no meu coraçãozinho cansado, pela camaradagem de Santo Antônio...

Com tantas expectativas, obviamente unilaterais, no dia do chope me vi diante de um desconhecido numa mesa de bar. O papo até que interessante, mas ele com um ar de superior que não se desfez um minuto sequer. Passada meia-hora, ele resolve me dizer que sou muito conservadora. A observação não tinha qualquer conexão com o assunto. E continuou: “Pelo seu modo de falar, de olhar, de segurar o copo, de se vestir, vejo que é conservadora”. Como não entendi de onde vinha a idéia, caí na besteira de perguntar. Ele, sem me responder, antes me testou: “Se não é conservadora, vamos pedir a conta e ir para um motel, agora!”.

Levei uns minutos para realizar as coisas. Nós não tínhamos sequer nos beijado. Aliás, mal tínhamos encostado um no outro, e mesmo assim só quando nos cumprimentamos. Fiquei olhando para aquele homem, que desde os últimos meses até aquele preciso momento tinha sido dono exclusivo dos meus suspiros. E pensei: “Diabos! Esse Santo Antonio me sacaneou!”.

Foi só falar o nome do coisa-ruim e uma Serpente que nem vi me empurrou uma maçã goela abaixo e acabou com todo o resto de paraíso. O meu candidato a homem da minha vida era um playboy carioca zona sul, riquinho, de família importante, talvez por isso mesmo idiota e arrogante. E agora ninguém mais desfaria a minha idéia de que o “bofe” tinha fimose, atrofia peniana e sofria de ejaculação precoce, e que tudo isso junto fez muito mal para as cabeças dele.

Ele ainda me perguntou por que recusei o convite. Disse só que não era a favor de sexo no primeiro encontro, e fomos embora. Ainda nos beijamos, acredite quem quiser, porque eu quase duvido que fiz isso. Talvez porque eu estivesse mesmo inconformada, tentando dar um voto de confiança pro desgraçado do Santo Antônio.

Hoje, acho que ele teve uma função importante na minha vida. Por me ajudar, indiretamente, a constatar que eu estava curada das minhas mazelas irremediáveis, já foi bom. Mas nunca mais nos vimos. Há dois meses, ele ainda me ligou para dizer que estava no Rio e para contar que tinha sido indicado para um cargo político. No início de fevereiro, ele foi empossado, e por conta disso ainda vi a cara dele, mas só nas fotos das matérias dos jornais. Ele continua bonito, mas, para mim, também continua com fimose, atrofia peniana e ejaculação precoce. Porque minha imaginação cria verdades de todos os tipos, mas as mais convincentes para mim mesma são aquelas ditas mais de uma vez...

Por conta das recentes matérias nos jornais, fiquei pensando na proposta dele e na razão da minha recusa. Não é simplesmente por conservadorismo que não concordo com sexo no primeiro encontro. É mais porque penso no sexo como uma brincadeira mágica, gostosa, leve, mas também tão intensa que não dá para brincar com qualquer um. Senão perde a graça, perde o gozo e, depois, nem adianta procurar. Porque não é que nem pique-esconde, e nem todo companheiro de brincadeira pergunta se “pode ir” depois de contar até três mil e seiscentos.

Acho que todo mundo deveria tentar criar relações minimamente significantes antes de querer fazer sexo. Porque aí sim há chances de existir a vontade de descoberta, o desejo de brincar de adivinhação. De cabra-cega e de pega-pega, com prazer de verdade. É só criança infeliz que, tendo mil brinquedos, vive triste e enjoada com todos, e fica sempre querendo ter mais. E como tem sempre alguém para dar tudo mesmo, nunca sobra nada para desejar, nem realidades fantásticas para criar.

Aprendemos certas lógicas utilitaristas desde pequenos. É por isso que sexo, nesse nosso mundinho consumista, parece que virou prestação de serviço. Eu prefiro continuar pensando nos meus modelos antigos de socialização de sonhos e de brincadeiras. Mas quem quiser seguir a linha de produção, que vá em frente, mas também aceite ser sempre trocado, porque defeito de fabricação e de uso inadequado é o que mais todo mundo tem.

Aliás, deixa eu parar por aqui. Acabo de me lembrar que tenho que ligar para o Procon...

Apaixonados pelo consumo dos corpos

Faz um tempinho desde a última vez que me apaixonei. Tudo começou na quarta-feira seguinte ao dia de Santo Antônio, que no ano passado caiu num domingo. Não tenho muita intimidade com a tradição católica, o que é uma pena. Mas meu pai, que sabe da vida de todos os santos, não perdeu a oportunidade de me dar um pãozinho de Santo Antônio, para ver se o casamenteiro lá dava um jeito na minha solteirice.

Naquela quarta-feira, eu estava na sala de reuniões quando alguém chegou no escritório. Pela porta de vidro translúcido, vi que era um estranho, ninguém da equipe. Quer dizer, estranho para mim, porque vi também que ele começou a conversar com a minha chefa, deixando as cadeiras de lado e sentando em uma das mesas. Achei aquilo esquisito, tanta intimidade num ambiente tão formal, com alguém mais formal ainda.

Intrigada, continuei prestando atenção. Claro que não dava pra ouvir nada, nem pra ver direito, só uma silhueta. E nessa de observar a silhueta, achei interessante os gestos dele, a maneira de mexer as mãos, de virar o rosto, que era, até aquele momento, nada além de um borrão. Eu tenho mesmo dessas coisas. Com a minha miopia aprendi a não depender tanto da imagem em si, porque o movimento das pessoas pode ser uma boa pista, talvez ainda mais marcante, mais incontestável.

Restava saber como era o rosto, porque também sou fascinada por detalhes, e costumo me saber gostando por causa de sorrisos e de olhares. Antes que eu pudesse descobrir por conta própria, Naná, a moça que servia o café, veio da cozinha, passou pela “silhueta” e entrou com a bandeja na sala de reuniões. Olhei para ela e em dois segundos entendi que o estranho, e pelo visto não só a silhueta, tinha agradado a mais alguém. Naná chegou pertinho de mim, na hora que estava colocando café na minha xícara, e falou, baixinho, pra ninguém ouvir nem perceber: “Mona, que bofe...”.

Afinal, soube que o “bofe” era o outro filho do dono da empresa. Acabara de chegar dos Estados Unidos, de Harvard, mais especificamente. Voltei para minha mesa, ele veio se apresentar. Foi só o cara virar as costas para eu escrever um e-mail: “Amiga, acho que o pãozinho de Santo Antônio funciona. Conheci o homem da minha vida: interessante, gato, usa o 212 da Carolina Herrera. Se veste bem, é descolado, estiloso, não é do tipo formal. O único problema é que tem uma pós-graduação em Harvard, o que agiganta as chances dele ser um grande pela-saco. Mas acho melhor não exigir muito do Santo, que, estou sentindo, resolveu caprichar...”.

Ele estava trabalhando em um projeto grande e, enquanto não tinha um escritório próprio, ficou usando o do pai. Daí, veio um convívio quase que diário, apesar de bem tímido. E eu, que tinha passado os seis meses anteriores de luto pelo término de uma relação falida, comemorei cada friozinho na barriga nas vezes que ele vinha na minha mesa puxar assunto. Indícios, finalmente, da minha libertação do passado recente.

Foram meses até que, por fim, marcamos um chope. Mas, com imprevistos e compromissos dos dois lados, só conseguimos nos encontrar depois de mais uns tantos meses, quando fui trabalhar em outro lugar e fiquei mais à vontade, porque sair com filho do chefão é muita furada. Com isso, se nos conhecemos naquela quarta-feira de junho, o primeiro encontro mesmo foi só no princípio de outubro. E eu já estava muito feliz, por tudo o que aquilo representava, pelos sopros de novidade no meu coraçãozinho cansado, pela camaradagem de Santo Antônio...

Com tantas expectativas, obviamente unilaterais, no dia do chope me vi diante de um desconhecido numa mesa de bar. O papo até que interessante, mas ele com um ar de superior que não se desfez um minuto sequer. Passada meia-hora, ele resolve me dizer que sou muito conservadora. A observação não tinha qualquer conexão com o assunto. E continuou: “Pelo seu modo de falar, de olhar, de segurar o copo, de se vestir, vejo que é conservadora”. Como não entendi de onde vinha a idéia, caí na besteira de perguntar. Ele, sem me responder, antes me testou: “Se não é conservadora, vamos pedir a conta e ir para um motel, agora!”.

Levei uns minutos para realizar as coisas. Nós não tínhamos sequer nos beijado. Aliás, mal tínhamos encostado um no outro, e mesmo assim só quando nos cumprimentamos. Fiquei olhando para aquele homem, que desde os últimos meses até aquele preciso momento tinha sido dono exclusivo dos meus suspiros. E pensei: “Diabos! Esse Santo Antonio me sacaneou!”.

Foi só falar o nome do coisa-ruim e uma Serpente que nem vi me empurrou uma maçã goela abaixo e acabou com todo o resto de paraíso. O meu candidato a homem da minha vida era um playboy carioca zona sul, riquinho, de família importante, talvez por isso mesmo idiota e arrogante. E agora ninguém mais desfaria a minha idéia de que o “bofe” tinha fimose, atrofia peniana e sofria de ejaculação precoce, e que tudo isso junto fez muito mal para as cabeças dele.

Ele ainda me perguntou por que recusei o convite. Disse só que não era a favor de sexo no primeiro encontro, e fomos embora. Ainda nos beijamos, acredite quem quiser, porque eu quase duvido que fiz isso. Talvez porque eu estivesse mesmo inconformada, tentando dar um voto de confiança pro desgraçado do Santo Antônio.

Hoje, acho que ele teve uma função importante na minha vida. Por me ajudar, indiretamente, a constatar que eu estava curada das minhas mazelas irremediáveis, já foi bom. Mas nunca mais nos vimos. Há dois meses, ele ainda me ligou para dizer que estava no Rio e para contar que tinha sido indicado para um cargo político. No início de fevereiro, ele foi empossado, e por conta disso ainda vi a cara dele, mas só nas fotos das matérias dos jornais. Ele continua bonito, mas, para mim, também continua com fimose, atrofia peniana e ejaculação precoce. Porque minha imaginação cria verdades de todos os tipos, mas as mais convincentes para mim mesma são aquelas ditas mais de uma vez...

Por conta das recentes matérias nos jornais, fiquei pensando na proposta dele e na razão da minha recusa. Não é simplesmente por conservadorismo que não concordo com sexo no primeiro encontro. É mais porque penso no sexo como uma brincadeira mágica, gostosa, leve, mas também tão intensa que não dá para brincar com qualquer um. Senão perde a graça, perde o gozo e, depois, nem adianta procurar. Porque não é que nem pique-esconde, e nem todo companheiro de brincadeira pergunta se “pode ir” depois de contar até três mil e seiscentos.

Acho que todo mundo deveria tentar criar relações minimamente significantes antes de querer fazer sexo. Porque aí sim há chances de existir a vontade de descoberta, o desejo de brincar de adivinhação. De cabra-cega e de pega-pega, com prazer de verdade. É só criança infeliz que, tendo mil brinquedos, vive triste e enjoada com todos, e fica sempre querendo ter mais. E como tem sempre alguém para dar tudo mesmo, nunca sobra nada para desejar, nem realidades fantásticas para criar.

Aprendemos certas lógicas utilitaristas desde pequenos. É por isso que sexo, nesse nosso mundinho consumista, parece que virou prestação de serviço. Eu prefiro continuar pensando nos meus modelos antigos de socialização de sonhos e de brincadeiras. Mas quem quiser seguir a linha de produção, que vá em frente, mas também aceite ser sempre trocado, porque defeito de fabricação e de uso inadequado é o que mais todo mundo tem.

Aliás, deixa eu parar por aqui. Acabo de me lembrar que tenho que ligar para o Procon...

terça-feira, fevereiro 22, 2005

Todo mundo nu!

Eu confesso, tenho um vício: não consigo parar de olhar para o rosto das pessoas na rua. De uns tempos para cá, venho me aperfeiçoando na prática. Meus óculos escuros têm as lentes cada vez mais escuras e as armações cada vez maiores. Tenho caprichado na minha postura de pretensa bailarina, mais esguia que nunca, queixo levantado, para me dar um ar insuspeito, quase esnobe. Algumas características físicas, como cabelos negros e pele branca, incrementam minha aura blasé. Uma maneira sutil de mexer as mãos, um caminhar distraído, um cantarolar disfarçado, e pronto! Estou preparada para observar sem ser notada, e me divirto muito com isso...

Antes, me detinha nos traços, nas cores da pele, nas formas. Ultimamente, desde minha decisão de facilitar minha vida e só me vestir de jeans, preto e branco, percebo cada vez mais as roupas e acessórios também. Eu achava que as cores perturbavam só a mim. Que nada, a diferença é que eu admito, e simplifico. As vitrines das lojas estão mais rosas que nunca, laranjas, amarelas, e, principalmente, verdes. No afã de obedecer às regras da moda de consumo de massa, as mulheres enlouquecem com as bolsinhas cor-de-rosa e as sandálias alface. Depois surge o problema: o de combinar tudo. O resultado dá desgosto, e isso não quer dizer que eu esteja me candidatando para o esquadrão da moda, porque acho que essas “tendências”, além de me serem completamente alheias, são escravizadoras e seguem a uma lógica torta. O desprazer está em constatar o excesso confuso de elementos, um certo caos que, pior de tudo, é aparentemente ordenado e, mais uma vez, cor-de-rosa.

Deixando um pouco as ruas e indo para as passarelas, Rio e São Paulo Fashion Week viraram tema da conversa de bar de dois domingos atrás. Concordo que ver os desfiles comentados do GNT Fashion vicia, e é do caramba escutar a explicação de quem pensa as coleções. A primeira entrevista que fiz com uma estilista me deu calafrios, porque eram muitas referências desconhecidas. Tive que fazer uma pesquisa sobre Milão, e me inteirar sobre Gucci, Versace, Gianfranco Ferré, Dolce & Gabana, etc. Foi ridículo eu lá, com cara de entendida, interagindo e falando das vitrines da Via della Spiga e da Monte Napoleone, vestindo minha camiseta Hering, calça jeans, bota e usando uma bolsa completamente hippie, porque uma hora depois eu estaria fazendo outra entrevista, na favela da Rocinha.

Bem, apesar do constrangimento inicial, gostei muito da conversa, saí do atelier da mulher não só aliviada, mas até achando tudo bem bacana, superconceitual. Assistir as entrevistas do GNT com os designers dá essa dimensão do conceitual, e daí cheguei a uma conclusão: as modelos seguem um padrão necessário de, por elas mesmas, não significarem nada. E tudo mais que se refere ao mundo da moda precisa ser vazio. E leve. Vazio para ser livre de conceitos, para poder ser preenchido com idéias diferentes, o tempo inteiro; um vazio a ser engravidado constantemente, para que haja partos de criatividade consumível, em escala industrial. E tudo precisa ser leve para equilibrar o peso dessas tantas idéias materializadas.

Cores gritam, causam euforia visual, agitam, acalmam, aquecem, abrem o apetite, esfriam, tudo junto. Não preciso de mais esse excesso de impulsos cerebrais. Vou continuar com meu jeans, minha camiseta branca e meu pretinho básico, pra simplificar. Cores só em detalhes, porque eu já sou confusa demais, em essência. E porque não agüento mais me consumir pelo consumo. E, se já quero me despir de tantos dos meus velhos conceitos, como ainda vou topar viver com penduricalhos dos alheios?

E agora? Todo mundo nu...

Todo mundo nu!

Eu confesso, tenho um vício: não consigo parar de olhar para o rosto das pessoas na rua. De uns tempos para cá, venho me aperfeiçoando na prática. Meus óculos escuros têm as lentes cada vez mais escuras e as armações cada vez maiores. Tenho caprichado na minha postura de pretensa bailarina, mais esguia que nunca, queixo levantado, para me dar um ar insuspeito, quase esnobe. Algumas características físicas, como cabelos negros e pele branca, incrementam minha aura blasé. Uma maneira sutil de mexer as mãos, um caminhar distraído, um cantarolar disfarçado, e pronto! Estou preparada para observar sem ser notada, e me divirto muito com isso...

Antes, me detinha nos traços, nas cores da pele, nas formas. Ultimamente, desde minha decisão de facilitar minha vida e só me vestir de jeans, preto e branco, percebo cada vez mais as roupas e acessórios também. Eu achava que as cores perturbavam só a mim. Que nada, a diferença é que eu admito, e simplifico. As vitrines das lojas estão mais rosas que nunca, laranjas, amarelas, e, principalmente, verdes. No afã de obedecer às regras da moda de consumo de massa, as mulheres enlouquecem com as bolsinhas cor-de-rosa e as sandálias alface. Depois surge o problema: o de combinar tudo. O resultado dá desgosto, e isso não quer dizer que eu esteja me candidatando para o esquadrão da moda, porque acho que essas “tendências”, além de me serem completamente alheias, são escravizadoras e seguem a uma lógica torta. O desprazer está em constatar o excesso confuso de elementos, um certo caos que, pior de tudo, é aparentemente ordenado e, mais uma vez, cor-de-rosa.

Deixando um pouco as ruas e indo para as passarelas, Rio e São Paulo Fashion Week viraram tema da conversa de bar de dois domingos atrás. Concordo que ver os desfiles comentados do GNT Fashion vicia, e é do caramba escutar a explicação de quem pensa as coleções. A primeira entrevista que fiz com uma estilista me deu calafrios, porque eram muitas referências desconhecidas. Tive que fazer uma pesquisa sobre Milão, e me inteirar sobre Gucci, Versace, Gianfranco Ferré, Dolce & Gabana, etc. Foi ridículo eu lá, com cara de entendida, interagindo e falando das vitrines da Via della Spiga e da Monte Napoleone, vestindo minha camiseta Hering, calça jeans, bota e usando uma bolsa completamente hippie, porque uma hora depois eu estaria fazendo outra entrevista, na favela da Rocinha.

Bem, apesar do constrangimento inicial, gostei muito da conversa, saí do atelier da mulher não só aliviada, mas até achando tudo bem bacana, superconceitual. Assistir as entrevistas do GNT com os designers dá essa dimensão do conceitual, e daí cheguei a uma conclusão: as modelos seguem um padrão necessário de, por elas mesmas, não significarem nada. E tudo mais que se refere ao mundo da moda precisa ser vazio. E leve. Vazio para ser livre de conceitos, para poder ser preenchido com idéias diferentes, o tempo inteiro; um vazio a ser engravidado constantemente, para que haja partos de criatividade consumível, em escala industrial. E tudo precisa ser leve para equilibrar o peso dessas tantas idéias materializadas.

Cores gritam, causam euforia visual, agitam, acalmam, aquecem, abrem o apetite, esfriam, tudo junto. Não preciso de mais esse excesso de impulsos cerebrais. Vou continuar com meu jeans, minha camiseta branca e meu pretinho básico, pra simplificar. Cores só em detalhes, porque eu já sou confusa demais, em essência. E porque não agüento mais me consumir pelo consumo. E, se já quero me despir de tantos dos meus velhos conceitos, como ainda vou topar viver com penduricalhos dos alheios?

E agora? Todo mundo nu...

terça-feira, fevereiro 15, 2005

Quando tenho medo de escolher só por covardia

Já faz um tempo tenho tentado ser mais tolerante com os meus próprios erros e com os dos outros. Busco não me torturar com minhas “culpas cristãs”, porque se eu ficar simplesmente me auto-flagelando nunca me movo em direção a mudanças concretas. Procuro me perguntar sobre as opções que quero fazer, para eu também poder defender os meus valores. Não com o intuito de me fechar para pensamentos diferentes ou propostas que destoam dos meus conceitos e “pré-conceitos”, de me armar para melhor me proteger. Que nada. Só quero que sonhos impulsionem meu caminhar; quero um alvo, que quase sempre mude de lugar, porque, muitas vezes, só mesmo o desvio me faz prosseguir.

No meu modo de ter fé, não acredito que Deus tenha um caminho prontinho para toda a humanidade percorrer. Aliás, creio mesmo é que Ele está de saco cheio da gente se repetir tanto e brigar para defender certas verdades, em vez de criar outras muito mais bacanas. Porque nisso a gente se aprisiona, olha a vida inteira a mesma estrada empoeirada, quando podíamos olhar pro céu, botar asas nas costas e voar sem rumo por aí.

Meus pais não desejaram por mim, apesar de já terem sido contra certas minhas escolhas. Minha mãe não gostava que eu fizesse cabaninhas com as almofadas do sofá da sala, nem que eu me trancasse no armário pra ler, nem que eu escalasse a soleira da porta imitando o homem-aranha, nem que eu grudasse o ouvido na caixa de som do rádio quando tocava uma música que eu gostava. Nem que eu vivesse pendurada nos galhos das árvores nos fins-de-semana no sítio, que eu comesse fruta demais antes do almoço, que eu andasse que nem um moleque, que eu me sujasse na lama, tomasse banho de chuva, subisse no telhado da casa, que eu abraçasse a filha da caseira pobre porque eu sempre voltava infestada de piolhos. Pior de tudo eram os cachorros vira-latas que viravam meus confidentes, com olhinhos compreensivos e orelhas atentas, e sempre me deixavam como herança um carrapato no umbigo, o lugar mais difícil de arrancar.

Aos onze anos, com a separação, fiquei morando com meu pai e dessa vez foi ele quem compôs a lista de preocupações com tudo o que estivesse me empolgando no momento. Capoeira era muito violento para meninas, movimento estudantil e passeatas não eram para a minha idade, igreja só para fanáticos, meus vários amigos o deixavam zonzo. E continuava com as “rugas” pelas minhas escolhas mais banais... “se ficar em casa lendo o tempo inteiro seu corpo vai enferrujar; exercício físico em excesso causa estresse muscular. Tomar sol é preciso; praia todos os dias é um absurdo, mesmo nas férias”. Anos mais tarde, ele foi contra o vestibular para jornalismo, porque eu não ia arranjar emprego depois. Há uns meses, reclamou que eu estava trabalhando demais e que não dava mais atenção pra ele.

Isso tudo me provoca uma vontade danada de riso incontido. Acabei fazendo o que queria, o que listei e tanto mais, até demais. Só que, mesmo hoje, quando estou bastante implicante (leia-se na TPM), acuso meu pai de não ter querido filha, mas uma bonequinha, pra ele manipular. No fundo acho só que ele não soube lidar comigo em alguns momentos, nem eu com ele, e esta é a prova mais saudável que eu não era uma bonequinha, porque senão vinha com folheto de instruções.

A consciência de que sou responsável pelas minhas escolhas me imobiliza às vezes, porque, de vez em quando, queria muito estar segura de que vou acertar. Mas sei que essa é uma das minhas tantas idéias babacas, porque se eu, com certeza só da minha insignificância, não venho com um manual de instruções, que dirá o mundo, que é muito maior e nunca mudou só porque eu nasci.

Hoje me sinto mais livre do que jamais antes, e isso é assustador. Tenho medo porque, apesar de livre, talvez continue com o pensamento escravizado. Tenho medo de a minha liberdade ser uma forma de castrar o outro. Medo de poder fazer, mas esperar até que ajam por mim. De ter forças para correr, mas me paralisar porque ninguém deu a ordem de partir. De saber o meu caminho, mas não andar por falta de companhia, porque ser livre muitas vezes é estar sozinho.

Quando tenho medo de escolher só por covardia

Já faz um tempo tenho tentado ser mais tolerante com os meus próprios erros e com os dos outros. Busco não me torturar com minhas “culpas cristãs”, porque se eu ficar simplesmente me auto-flagelando nunca me movo em direção a mudanças concretas. Procuro me perguntar sobre as opções que quero fazer, para eu também poder defender os meus valores. Não com o intuito de me fechar para pensamentos diferentes ou propostas que destoam dos meus conceitos e “pré-conceitos”, de me armar para melhor me proteger. Que nada. Só quero que sonhos impulsionem meu caminhar; quero um alvo, que quase sempre mude de lugar, porque, muitas vezes, só mesmo o desvio me faz prosseguir.

No meu modo de ter fé, não acredito que Deus tenha um caminho prontinho para toda a humanidade percorrer. Aliás, creio mesmo é que Ele está de saco cheio da gente se repetir tanto e brigar para defender certas verdades, em vez de criar outras muito mais bacanas. Porque nisso a gente se aprisiona, olha a vida inteira a mesma estrada empoeirada, quando podíamos olhar pro céu, botar asas nas costas e voar sem rumo por aí.

Meus pais não desejaram por mim, apesar de já terem sido contra certas minhas escolhas. Minha mãe não gostava que eu fizesse cabaninhas com as almofadas do sofá da sala, nem que eu me trancasse no armário pra ler, nem que eu escalasse a soleira da porta imitando o homem-aranha, nem que eu grudasse o ouvido na caixa de som do rádio quando tocava uma música que eu gostava. Nem que eu vivesse pendurada nos galhos das árvores nos fins-de-semana no sítio, que eu comesse fruta demais antes do almoço, que eu andasse que nem um moleque, que eu me sujasse na lama, tomasse banho de chuva, subisse no telhado da casa, que eu abraçasse a filha da caseira pobre porque eu sempre voltava infestada de piolhos. Pior de tudo eram os cachorros vira-latas que viravam meus confidentes, com olhinhos compreensivos e orelhas atentas, e sempre me deixavam como herança um carrapato no umbigo, o lugar mais difícil de arrancar.

Aos onze anos, com a separação, fiquei morando com meu pai e dessa vez foi ele quem compôs a lista de preocupações com tudo o que estivesse me empolgando no momento. Capoeira era muito violento para meninas, movimento estudantil e passeatas não eram para a minha idade, igreja só para fanáticos, meus vários amigos o deixavam zonzo. E continuava com as “rugas” pelas minhas escolhas mais banais... “se ficar em casa lendo o tempo inteiro seu corpo vai enferrujar; exercício físico em excesso causa estresse muscular. Tomar sol é preciso; praia todos os dias é um absurdo, mesmo nas férias”. Anos mais tarde, ele foi contra o vestibular para jornalismo, porque eu não ia arranjar emprego depois. Há uns meses, reclamou que eu estava trabalhando demais e que não dava mais atenção pra ele.

Isso tudo me provoca uma vontade danada de riso incontido. Acabei fazendo o que queria, o que listei e tanto mais, até demais. Só que, mesmo hoje, quando estou bastante implicante (leia-se na TPM), acuso meu pai de não ter querido filha, mas uma bonequinha, pra ele manipular. No fundo acho só que ele não soube lidar comigo em alguns momentos, nem eu com ele, e esta é a prova mais saudável que eu não era uma bonequinha, porque senão vinha com folheto de instruções.

A consciência de que sou responsável pelas minhas escolhas me imobiliza às vezes, porque, de vez em quando, queria muito estar segura de que vou acertar. Mas sei que essa é uma das minhas tantas idéias babacas, porque se eu, com certeza só da minha insignificância, não venho com um manual de instruções, que dirá o mundo, que é muito maior e nunca mudou só porque eu nasci.

Hoje me sinto mais livre do que jamais antes, e isso é assustador. Tenho medo porque, apesar de livre, talvez continue com o pensamento escravizado. Tenho medo de a minha liberdade ser uma forma de castrar o outro. Medo de poder fazer, mas esperar até que ajam por mim. De ter forças para correr, mas me paralisar porque ninguém deu a ordem de partir. De saber o meu caminho, mas não andar por falta de companhia, porque ser livre muitas vezes é estar sozinho.