sexta-feira, outubro 26, 2007

Álbum de família - parte I

A Dani e eu, há uns seis anos, fizemos o trato de morarmos no mesmo prédio depois de casadas. Dizíamos também que na casa de uma e de outra haveria um quarto de hóspedes e nos revezaríamos nas visitas frequentes. Não me lembro bem, mas acho que a idéia partiu dela, que não gostava de pensar na possibilidade de ficar longe de mim. Apesar da Dani ser quatro anos e meio mais velha, eu a protegia. Ela corria pra minha cama quando tinha pesadelo – ela sempre tinha pesadelo – e muitas vezes cismava de dormir de luz acesa. Quando eu tinha 18 anos, no Kibbutz, recebi uma carta sua que dizia algo como: “agora não tenho mais como pular na sua cama quando sinto medo. Para amenizar a situação, pedi para papai comprar uma lâmpada fraquinha, assim não durmo no escuro. O cara da loja indicou a luz azul pois, segundo a cromoterapia, acalma o bebê. Papai só ficou com vergonha de dizer que o bebê tinha 23 anos”.

Ela sempre se assustava com tudo, via fantasmas. Eu não, era mais deste mundo, então a Dani, quando éramos crianças, tinha que se esforçar muito para me convencer a ficar no banheiro enquanto ela tomava banho – e aqueles banhos demorados que só ela sabe tomar. Ela me enrolava de muitas maneiras e era criativa demais. Primeiro tentou me convencer dizendo que, na minha vez de tomar banho, me esperaria. Mas não colou porque eu nunca sentia medo, logo não precisava do favor. Então passou a me pedir para cantar as musiquinhas que eu havia aprendido na escola, e era um tal de: “repete aquela primeira! Gostei tanto!”, “mais uma vez!”, e assim o banho acabava. Foram muitos os truques, piadas e segredos que ela inventou pra me manter no banheiro durante várias noites da minha infância.

Na verdade, eu sentia medo sim, mas era de umas coisas que ela fazia. Meu irmão do meio e eu muito frequentemente chorávamos depois de brincar de algum jogo de tabuleiro com dados ou roleta. A Dani, na sua vez de jogar, olhava pra gente com um sorriso pavoroso e repetia o número que ela queria: “Seis, seis, seis”. E dava o seis. Na nossa vez, valia a mentalização dela também, mas com objetivo inverso: “um, um, um”. E dava o um. Saíamos choramingando, meu irmão e eu: “Mãaaae! Olha a Dani fazendo macumba!”.

Seus poderes tornaram a minha infância mágica. Eu não podia ver o que minha irmã via, não recebia a visita da dindinha e da vovó mortas, mas imaginava tudo. E ela ainda tinha essa tal de força mental assustadora. Como se não bastasse, era manipuladora e sacana ao extremo. Coitadas das outras crianças, que eram persuadidas a fazer trocas absurdas e perdiam os melhores papéis de carta pra ela. Comiam balas recheadas com pimenta e, sem entender muito bem o que acontecia, ainda pediam mais. Tenho fotos do Artur, meu irmão, vermelho de tanto chorar, aos três anos, com colares enormes, brincos de pressão e uma maquiagem bizarra. Obra de quem?

Artur, sempre o primeiro a dormir e com seu sono pesado, sofria. Não raro acordava aos berros, todo cagado de pasta de dente ou maquiado, ou simplesmente puto pelo sono interrompido depois de horas de cosquinha no nariz feita com o pincel da escola. Óbvio que eu, só por assistir, acabava apanhando no dia seguinte. Na Dani, dois anos mais velha, ele não podia bater.

Como Artur nasceu com problemas respiratórios, a cena dele dormindo era motivo de riso: boca aberta, baba que não acabava mais, ronco. Mas a Dani conseguia transformar em chacota também o momento em que ele acordava. Muitas vezes nós duas ficávamos conversando enquanto ele já estava no décimo sono. De repente abria os olhos e pedia pra apagarmos a luz. A Dani então me cutucava, dava uma risadinha, e começava a falar mais baixo, olhando pra ele: “Ih, olha só! Ele tá sonâmbulo. Vamos tomar cuidado pra ele não despertar”. Artur tentava explicar que já havia acordado e queria apenas que apagássemos a luz. E ela continuava: “Não responde, Gisele, porque pode ser perigoso. Não devemos acordar os sonâmbulos”. E ficavam um tempão nessa até que ele se exaltava: “eu não tô dormindoooo”, e ia reclamar com meus pais.

Sabe-se lá o porquê da Dani nunca receber punição. Acho que meu pai era zen demais e minha mãe muito rude e ingênua pra processar aquelas artimanhas. Ou talvez o código dos pais preveja penas somente para atos de agressão física e não para tortura psicológica mirim.

E eu, pra variar, levava um sacode do Artur no dia seguinte...


(continua no próximo post)