domingo, novembro 12, 2006

Eu perdi o meu medo, meu medo da chuva

Naquela manhã em que, de mochila nas costas e adeus nas mãos, orientei meus passos rumo ao aeroporto de Schiphol, de onde partiria com destino a Guarulhos, os cinco graus centígrados no termômetro me pareceram uma mística despedida. Desde minha chegada à Europa, três meses antes, cada cidade visitada me recebera com sol: Londres, Amsterdã, Paris, Porto, Amsterdã outra vez, Bruxelas, Paris novamente, Londres ainda, Amsterdã por fim. Dias chuvosos eram véspera da minha chegada ensolarada. A gente aprende a acreditar em uns mistérios bobos pra deixar a vida mais bonita... e nessa, o mundo acaba ganhando cor de verdade.

Os últimos dias na preferida Amsterdã foram de temperatura que oscilava entre 11 e 15 graus. O outubro mais quente em trezentos anos, disseram os noticiários. A minha alma brasileira, tão acostumada com o Rio de Janeiro, não se abalou com os oito graus da véspera da partida e a linda chuva de pedacinhos de gelo (da qual nos protegemos, Dani e eu, no café de Nieuwmarkt). “Eu perdi o meu medo, o meu medo da chuva”... e aprendi a ver beleza nela.

Quem reclama dessa garoa de ultimamente, agora, aqui, no Rio de Janeiro, não desconfia do bem que ela me faz. Feito a passagem do livro da infância, do Pequeno Príncipe de tantos clichês: “Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...”.

A chuva rega as ainda frescas lembranças de caminhadas pelas cores de Zeedijk, de cervejas em entorpecentes esquinas, de buzinas de bicicletas misturadas com o Radiohead dos meus tímpanos, dos canais e suas flores, de pedaladas na beira dos diques, docas e campos de ovelhas e vacas.

Olho pra minha janela, o verde das árvores continua a ser banhado de recordações. Bem ali, se forma a imagem de um sorriso, de uma criança que brinca de bola no pátio molhado enquanto espera sua mãe. É uma imagem atemporal, de uma felicidade passada, presente, porvir. Por ela, vale à pena viver, vale chover.

3 comentários:

Ermancinha disse...

Ohhh Ermancinha..vc me fez chorar agora...to aqui igual a uma manteiga derretida lendo o seu post pela terceira vez..."lembranca passada, presente, porvir"...Que saudade de vc !!!!!!!!!!!!! E mais ainda de pensar que o Lucas ainda nao se convenceu que vc nao vai voltar "de viagem" essa vez(pelo menos nem tao cedo)...ele ainda te espera, ainda fala seu nome qdo ve uma sombra perto da janela, achando que eh vc que retorna, mais uma vez...Passou tao rapido, mas te espero aqui sempre ! bjs.

Luciana Gondim disse...

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.

Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.


Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estilosa galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaivagem
se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.

Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida


Se um dia te afastares de mim, Vida — o que não creio
Porque algumas intensidades têm a parecença da bebida —
Bebe por mim paixão e turbulência, caminha
Onde houver uvas e papoulas negras (inventa-as)
Recorda-me, Vida: passeia meu casaco, deita-te
Com aquele que sem mim há de sentir um prolongado
vazio.
Empresta-lhe meu coturno e meu casaco rosso:
compreenderá
O porquê de buscar conhecimento na embriaguês da via
manifesta.
Pervaga. Deita-te comigo. Apreende a experiência lésbica:
O êxtase de te deitares contigo. Beba.
Estilhaça a tua própria medida.

Hilda Hist

Cláudia Lamego disse...

A chuva me traz gosto de vinho. E cheiro de livro de biblioteca do século XVIII.
Beijos!