terça-feira, dezembro 27, 2005

Eu, por mim mesma - Tomo quinto

"História que não pára de acontecer"

música: Jingle Jangle, do Hot Hot Heat

“another day, another night, another year
another smile, another lie, another tear
its bad enough this is all I've got
I never thought I'd end up here”



No meu caminho para a Igreja, onde haverá uma celebração de Natal, um desabafo me escapole em forma de oração: “Eu queria aprender a amar sem me perder de mim”.

Carrego um coração apertado e uma sacola que aperto entre os dedos, a qual deverá ser entregue à amiga que trabalha com o “último absoluto”. Ali dentro, objetos a serem devolvidos, porque não suporto mais escancarar lembranças todas as vezes que abro meu armário.

Há dois dias, como combinado, foram deixados com ela meus DVDs – entre os quais, o box do Chico Buarque. Pedi que ele os copiasse para outra amiga, com quem, por acaso, também me encontrarei em algumas horas. Ele não chegou a copiar, o que não chega a ser surpresa. O não-cumprimento sempre foi o destino de suas promessas.

Na igreja, tudo é tão bonito, a música, as luzes, que me dá paz. Lembro-me de Dostoiévski: “A beleza salvará o mundo”...

Ao término, vou para o bar onde, daqui a pouco, encontrarei a amiga que deverá receber a sacola. Um casal, meu amigo dos tempos de colégio e minha amiga de faculdade, me acompanha sem intenção de demora. Eles se conheceram por minha causa, começaram a namorar e, logo depois, meu amigo dos tempos de colégio me apresentou para o “último absoluto”.

Ligo para a amiga que já não ganhará DVDs piratas do Chico. Ela avisa que está em outro lugar, com um outro pessoal, mas que aparece mais tarde.

Na mesa, o casal e eu nos divertimos entre conversas, arranjos para a festa do Reveillon, chopes e caixas. Sim, porque estamos concentrados na fabricação de pequenas caixas feitas daqueles cartõezinhos publicitários dobrados – os que chamam de “mica”. A sacola permanece do meu lado, ali no chão. Meu coração torna a ficar apertado e não consigo deixar de voltar os meus olhos para a rua, para a porta do bar. Então, entre uma dobradura e outra, numa dessas insistentes espiadas, eu o vejo na fila, esperando para entrar.

Continuo o meu trabalho de construção de caixas até que, finalmente, anuncio sua chegada aos amigos da mesa, que riem imaginando se tratar de uma piada e que mal se convencem depois de constatarem que não. Sem pensar, por já não conseguir, passo a mão na sacola e vou até lá.

Ele está usando a mesma camisa da nossa primeira noite juntos. A mesma que vesti depois de ter estado despida, quando me vi cansada e feliz, no apartamento da amiga que, nesta noite de Natal, deveria receber a sacola que, agora, entregarei pessoalmente a quem por direito pertence.

Ele não está sozinho. Literalmente pula de susto quando me vê. Eu o cumprimento com dois beijos no rosto e entrego a sacola. “Que bom que não preciso mais carregar isto”, digo. Visivelmente desconcertado, me apresenta a sua companhia - que, por sinal, já conheço, mas ele não parece estar em condições de se lembrar disso. Assim como minha amiga, a “companhia” também trabalha com ele. Eu a conheci na última vez que nós dois nos encontramos, tão casualmente quanto agora, bem perto deste mesmo bar, quando tudo era mais recente do que ainda é. Naquele vinte e cinco de novembro -há exatamente um mês! - ele estava com um grupo de amigos do trabalho, do qual ela, a companhia, fazia parte; simplesmente, supostamente. Até aqui, tampouco vejo o que contrarie essa verdade, apesar do desconcerto dele, de suas palavras desencontradas, como as minhas. Apesar do bar a dois nesta noite chuvosa de Natal.

Tudo isso acontece em menos de dois minutos, eu acho. Afinal, minha noção de tempo, agora distorcida, faz com que tudo me venha como flashes: imagens, vozes, meus próprios gestos. Volto para a mesa e o deixo na fila após ter lhe dado um bom motivo (maior que a fila) para ir embora imediatamente. Meu amigo dos tempos de colégio, também amigo dele, se levanta e vai até lá.

Retomo minha tarefa de dobrar cartões para continuar a construir caixas, sem deixar de pensar que, segundo a minha mais recente teoria sobre amores contrariados, ele é a maior caixa que criei.


Continua no próximo post

****

Personagens presentes, por ordem de aparição:

Eu, por mim mesma;
Um casal: ele, meu amigo dos tempos de colégio. Ela, amiga de faculdade;
O "último absoluto";
A amiga de trabalho do "último absoluto".

Personagens citados:

Minha amiga que também trabalha com o "último absoluto", quem deveria ter recebido a sacola. Amiga minha, não dele;
Minha amiga que não mais ganhará DVDs piratas de presente.

4 comentários:

Anônimo disse...

Gigia,
que bom que você voltou a escrever. você sabe que, além da satisfação de ler suas linhas inspiradas, de quebra amenizo a saudade que a distância nos impõe.
Mas me entristece ver seu coração sonhador de mulher tão contrariado... E discordo da teoria da caixa, pelo simples fato de que soa como se a culpa fosse então sua!! alguém pode ser culpado por ter uma caixa cheia para dar??
infelizes os que vêm egoisticamente com sua caixa vazia, ávidos por receber e sem nada prá dar.
nunca vão saber o que é amar.

um beijo!!!

A digestora metanóica disse...

Querido, a questão é que eu sou egocêntrica a ponto de achar muito mais divertido teorizar sobre mim mesma.

gisela cañamero disse...

parabéns pela escrita. muito boa. e, de facto, com uma respiração onde se percebe o distanciamento e o humor.

www.cigarranapaisagem.blogspot.com

A digestora metanóica disse...

Obrigada, Gisela. Seu blog é bem bacana. Deixei comentário por lá.