quinta-feira, dezembro 29, 2005

Eu, por mim mesma - Tomo quinto, parte dois

"Passada a limpo em pouca quadras"

música: Goodnight Goodnight, do Hot Hot Heat

“So goodnight, goodnight.
You're embarassing me,
you're embarassing you.
So goodnight, goodnight.
Walk away from the door,
walk away from my life.”


Meu amigo retorna, senta e não faz comentários. O “último absoluto” vem logo em seguida, com a “companhia”. Passam por nós, ambos cumprimentam minha amiga, que segue com seu workshop de caixinhas, pois, ali, ela é a mestra. Ele, antes de ir para a sua mesa, mostra que é mestre na arte de pronunciar o maior número de frases desajeitadas seqüenciais no menor tempo possível.

Quando ele vira as costas, deixa um silêncio que, apesar de perturbador, não me dissuade da firme resolução de não quebrá-lo. Por fim, alguém faz isso por mim e eu, então, me sinto livre pra perguntar se o meu amigo acha que os dois estão juntos. Meu amigo, que outrora negara essa possibilidade com veemência, agora balança a cabeça afirmativamente.

Sorte que eu ainda tenho caixas para montar com as micas dobradas, porque, do contrário, não saberia para onde olhar, nem o que fazer com as mãos. Mas tanta arte-terapia não é suficiente para afastar os pensamentos todos que me vêm em velocidade esquizofrênica. Efeitos desta noite de Natal cheia de coincidências – ou milagres, ou sincronicidades. Sim, porque este bar é dos meus favoritos, mas nunca é aqui que tomo a cerveja dos domingos. Tampouco vivo a carregar uma sacola de lembranças e um coração apertado nas minhas noites natalinas – dominicais e chuvosas ou não.

O casal anuncia que precisa ir embora em 10 minutos. A amiga que deveria receber a sacola, a esta altura, já avisou que não vem. Imediatamente, tento falar, mais uma vez, com a amiga que já não ganhará DVDs piratas do Chico. Sem sucesso.

Eu, então, pego meu celular, me levanto, saio do bar e ligo para o mesmo número que liguei, pela primeira vez em quase dois anos, há poucos dias atrás. Diferentemente de antes, agora obtenho como resposta o alô tão familiar. É ele, meu ex-namorado. O “autor da frase célebre”, o meu “último relacionamento duradouro que deixou de durar”. O homem que mais amei nessa minha vida, a qual ainda há de preencher-se de tantos anos e amores.

As palavras trocadas são, mais que cordiais, engraçadas, descontraídas. Ele está em sua casa, distante dali apenas duas quadras, onde acontece uma confraternização com os amigos que tão bem conheço de outras confraternizações. Apesar do papel de anfitrião da noite, ele diz que se encontrará comigo em 40 minutos e levará alguns de seus convidados que não vejo há dois anos.

Volto para a mesa, o casal pergunta com quem eu falava. Eu respondo e, pela segunda vez na noite, recebo olhares incrédulos. Peço que esperem até que ele chegue, mas isso não é mesmo possível. Da minha mente, incapaz de assimilar os tantos pensamentos esquizofrênicos, brota uma idéia infeliz que dribla facilmente minha autocensura fragilizada e conta com os favores da minha impulsividade.

Caminho até o outro casal, composto pelo “último absoluto” e sua companhia, aviso que os que me acompanham partirão em poucos minutos e proponho, como espero outras pessoas, que eles se mudem para a minha mesa, pra que os lugares sejam marcados e os amigos que aguardo não tenham que enfrentar a fila para entrar. Ambos fazem cara de pinheiro seco e, como para o meu convite descabido parece não existir resposta sensata, eles aceitam.

Vou ao banheiro, me olho no espelho e tento calcular o tamanho do estrago causado pela dormência do meu senso de ridículo. Nessa de me olhar no espelho, vejo que meu dente da frente está verde, sujo de salsa do caldinho de feijão que tomei, e meu cabelo continua brilhando, com resquícios da purpurina que uma Drag Queen jogou em mim na festa de sexta-feira. Concluo, então, que o vexame foi maior do que eu imaginava.

É um absurdo permanecer assim. Volto à minha mesa e decido ir-me com o casal de amigos, para me encontrar com os demais em qualquer lugar que não este. Despeço-me do outro casal e, com um sorrisinho amarelo (não mais verde de salsa), comento que minha proposta foi uma idéia de jerico, afinal eles é que perderiam a mesa. Os dois pinheiros secos concordam – aliviados, provavelmente.

Com a mudança de planos e horários, meu destino é a casa do ex. Apesar das tantas pessoas queridas que celebram o Natal no apartamento dele, não subo para vê-las, porque não pretendo demorar. O abraço é forte, como tem que ser. A primeira coisa que digo é que venho em busca de um depoimento, já que estou escrevendo um livro cujo título é "Alta Fidelidade” *. Ele dá uma gargalhada e confessa que, neste Natal, também sentiu vontade de buscar depoimentos assim, inclusive o meu.

A conversa de portaria dura uma hora e meia. Do tanto que falamos, sobra agora o que contar...

Quando, por fim, nos despedimos, o relógio me mostra que falta pouco para uma da manhã. Ligo para a minha amiga que deveria ter recebido a sacola e, como ela trabalha no mesmo lugar que o “último absoluto” e a “companhia”, pergunto se o que vi horas antes, vi de fato. Ela confirma que ouviu rumores há alguns dias.

O último telefonema da noite, transformada em moça madrugada, é para minha amiga que não mais ganhará DVDs do Chico. Ela também mora por perto, a algumas quadras, e é lá que descansarei até o Natal passar de vez.

Não dormimos até que, com Chico Buarque tocando ao fundo, eu a coloque à par dos detalhes da minha crônica natalina. Talvez pela forma como conto e como vejo tudo agora, ela ri em diversos momentos. Certamente, os acontecimentos de há pouco estão longe de constituírem uma tragédia. A amiga sabiamente conclui que o destino, neste Natal, me presenteou com concisão geográfica. Minha vida passada a limpo em pouca quadras...

Já deitada na cama, insone mas tranqüila, certa de que o dia qualquer hora amanhece, penso que, mais que uma dor pra chorar, tenho uma história pra escrever.

E a história do “último absoluto” acaba assim, da maneira mais consoladora pra quem amou: sem mais o que dizer.



**************

*em menção ao filme de mesmo nome, em que o personagem principal, vivendo uma separação, vai atrás de cinco ex-namoradas para descobrir algo sobre si próprio.

7 comentários:

Anônimo disse...

Não creio em destino, mas certos acontecimentos parecem mais que coincidências...
é curioso como alguns ciclos às vezes se completam, tão exatos, que parecem enredos pré-escritos.
e só te resta atuar como protagonista,
sem deixar de se divertir como espectador.

A digestora metanóica disse...

Que lombriga mais misteriosa!
"é curioso como alguns ciclos às vezes se completam, tão exatos, que parecem enredos pré-escritos"... Peraí! EU deveria ter escrito isso!
É, meu caro parasita...

Anônimo disse...

adorei voltar a ler suas aventuras...precisamos nos encontrar mais como naquele domingo de sol...não deixe de me ligar, viu!

e, a propósito, como é uma cara de pinheiro seco??

Parole da Salme disse...

Eu te amo, eu te amo, eu te amo!

A digestora metanóica disse...

Cla:

Você não sabe como foi inspirador aquele domingo de sol. Fiquei com muita vontade de escrever sobre nossa conversa. Vi que precisava concluir logo meus tomos, pra tocar outras digestões. fiquei com vontade de falar sobre os comitês em defesa da revolução. Obrigada pela tarde maravilhosa.
Beijos

PS - Cara de pinheiro seco é qualquer uma que seja condizente com a cara que você imagina que alguém no lugar dos dois pinheiros secos faria.

Salme:

Salve Salme! Eu escutei você hoje falando sobre Emilinha Borba na rádio! Aliás, o meu pai sempre te ouve e me vem me contar.
Também te amo, te amo, te amo!
Beijocas

Anônimo disse...

Um pouco de sintonia - talvez reflexos da convivência parasitária...

A digestora metanóica disse...

Lombriga, que angústia pensar que eu desconheço tanto o meu próprio aparelho digestório, que eu não sei a que parasitas sirvo de hospedeira.