sexta-feira, março 04, 2005

Na morada dos entulhos


Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia entrar nela, não
Porque na casa não tinha chão
Ninguém podia dormir na rede
Porque na casa não tinha parede
Ninguém podia fazer pipi
Porque penico não tinha ali
Mas era feita com muito esmero
Na rua dos Bobos
Número zero
(A Casa, de Vinicius de Moraes)

Esta semana tive que procurar umas fotos de três anos atrás, de um ensaio que fiz para a aula de fotojornalismo sobre trabalho informal no Rio de Janeiro. Por conta disso, na segunda-feira dormi às cinco da manhã, revirei a casa inteira, e nada. Só encontrei mesmo no dia seguinte, mas, até que isso acontecesse, eu fui jogando muita coisa fora. Acho engraçado eu ter tanta tralha acumulada, já que limpo tudo com uma freqüência bastante razoável.

Gosto de abrir as janelas, limpar as gavetas, arrumar os armários, pois não consigo deixar de perceber nisso uma metáfora da minha própria condição. Tomo o exemplo recente: não é à toa que, depois de cinco anos de faculdade, eu tenha me desfeito de tantos trabalhos, cadernos, folhas fotocopiadas e redações. Porque um ciclo se completou. O jogar fora é um ato de escolha, quase sempre. E de autoconhecimento, de percepção sensível. De compreensão das próprias mudanças, de coragem para se desvencilhar do tanto que a dinâmica da vida exige. Seria falta de apego da minha parte? Não mesmo. Tenho extrema dificuldade com os bilhetinhos trocados nas salas de aula de dez, doze anos atrás. Eu queria, sim, era não me apegar tanto. E a grande questão são os objetos que só fazem sentido pra mim mesma.

O meu ex-namorado era um excelente ilustrador. Mas ele nunca me desenhava. Certa noite, em um restaurante que fica numa das esquinas que mais gosto, enquanto falávamos de arte, construção da realidade, fé e tanto mais, ele fez um desenho de nós dois no papel que forrava a bandeja. Então, pediu que eu escrevesse algo sobre aquele momento e, em seguida, propôs que fôssemos embora e deixássemos o desenho ali mesmo.

Era a primeira vez que eu era desenhada, não podia abrir mão daquilo! Mas ele, por fim, me convenceu ao contar a história dos budistas, que se dedicam durante um ano na confecção de mosaicos de areia que são, no fim, pisados e desmanchados por um dos monges. A idéia é que o impulso maior seja a crença em um fazer e refazer constante, sem que as obras daí decorrentes tornem-se armadilhas, motivos de contemplações vazias capazes de nos aprisionar.

Tendo virado as costas para uma das manifestações de carinho que mais me emocionara até então, confesso que nos divertimos ao imaginar o que seria feito do desenho quando fosse encontrado. A resposta veio em duas semanas: um casal de amigos almoçou no mesmo lugar, e daí tomamos conhecimento de que estava numa moldura, pendurado na parede do restaurante. Quando voltamos lá para ver, os funcionários me reconheceram por causa da própria ilustração e logo o gerente foi chamado, porque estavam todos, há dias, curiosos para saber quem eram os autores da brincadeira.

Um ano depois disso tudo ter acontecido, com nosso relacionamento tão desmanchado quanto os mosaicos de areia dos budistas, voltei lá e pedi para ver o quadro de novo. Só para dar uma espiada, já que não estava mais na parede, mas na sala da gerência. Quando souberam que não mais existia o casal representado naquele papel emoldurado, me deram o quadro de presente. E este foi um dos meus momentos de maior angústia... Comigo aquele desenho não significava coisa alguma, não contava mais histórias, não me trazia lembranças, não me falava de um passado. Porque jamais foi feito para ser meu. Mas, até hoje, ele continua lá, numa parede coadjuvante da minha casa, por onde pouco passo, sem qualquer função, pois ainda não consegui jogá-lo fora.

Apesar da disposição de me "arejar", minha casa ainda resta cheia dos meus entulhos. E não importa de quem seja a casa, é quase sempre assim. Minha casa, sua casa. Qualquer e toda casa. Casa de boneca, da infância, da imaginação. Habitação de lembranças e casulo de sonhos. Vivenda de sentimentos. Casa feita de doces, como a de João e Maria. Casa de marimbondo. Casa de muitas moradas, como a do Pai.

Em “Cem anos de solidão”, o lar dos Buendía não é apenas o cenário das tramas familiares. Cada nova alegria é materializada na casa, que se enche de luz, de borboletas, de jardins. E tudo floresce, respira, pulsa, vive. Mas, de tempos em tempos, ela também cheira a mofo, é invadida pelo mato crescido, pelos insetos que perambulam nas paredes rachadas.

Na época da Páscoa, os judeus ficam sete dias sem comer o que eles chamam de “hametz” - o fermento, que representa a impureza. A recomendação é bíblica: “Fermento não se achará contigo por sete dias, em todo o teu território” (Deuteronômio, 16:4). Mesmo nos dias de hoje, as famílias mais zelosas de suas tradições abrem a dispensa e queimam todo o fermento existente em suas casas. Como se não bastasse, usam louças especiais, que jamais tiveram contato com alimentos impuros. E as paredes de muitas casas recebem uma mão de tinta fresca a cada ano, como sinal de renovação.

Ainda na bíblia, outra passagem sobre a Páscoa e mais uma recomendação de Jeová: “Não oferecerás o sangue do meu sacrifício com pão levedado, nem ficará gordura da minha festa durante a noite até pela manhã” (Êxodo 23:18). Daí, penso que, talvez, o Deus do Antigo Testamento não estivesse tão preocupado com a impureza em si, mas com o ato de renovação. Apesar da festa e da alegria da véspera, nas minhas interpretações tortas ouço um conselho: o de esperarmos o amanhã varridos de certos acúmulos, alguns até provenientes dos momentos felizes. Para que nem essas mesmas alegrias sejam impedimento para que se siga em frente.

14 comentários:

O Micróbio disse...

Nada nos pode impedir de seguir em frente... e já agora posso pedir-te um favor? Quem canta e o nome da letra da música com que iniciaste o post?

A digestora metanóica disse...

o micróbio:
Desculpe a falha, mas é que trata-se de uma canção infantil muito conhecida aqui no Brasil. Chama-se A Casa, e é do Vinicius de Moraes. Já coloquei lá em cima.
Beijos!

brother disse...

Gigia

acabei de visitar seu blog. não apenas visitei, como devorei avidamente TODOS seus posts disponíveis, desde janeiro.
foram 2 horas de uma alternância de sentimentos de toda sorte, que jorram como um rio tormentoso e espumante, ao qual nada nem ninguém jamais poderia se interpor, e que no entanto corre sem nunca desviar-se do seu rumo.
foram 2 horas de remição a sentimentos embolorados em mim pela falta de uso. Li um ciclone de coisas tão importantes e que não são lembradas, justamente por serem tão simples, tão cotidianas. palavras derretem muralhas de gelo, e derrubam castelos alemães.
se eu não te conhecesse, ao ler seus ensaios eu viraria, irremediavelmente, seu fã. por te conhecer (que presunção, alguém achar que te conhece), e pela história de carinho e cumplicidade que temos, tenho orgulho de ser bem mais que um fã, e sem deixar de sê-lo.
não deixe a energia que acaso brote deste elogio transformar-se em vaidade, e jamais se esqueça que o sucesso da sua escrita vem da simples transparência de sua alma perfumada.

Anonymous disse...

Outro dia me desfiz de inúmeros entulhos de papel que minha mãe carinhosamente pediu pelamordedeus que me desfizesse daquilo...Tive a mesma sensação que vc descreve...
Foi engraçado porque ela mesma, minha mãe, guardou um monte de pintura colorida a dedo de quando eu tinha um ano de idade, junto com os meus "relatórios de desenvolvimento" da creche. Aí lá vinha escrito: "Clarissa prefere ficar na sala sozinha empilhando peças ou lendo livros, tem muito equilíbrio e muito bom ritmo na aula de expressão corporal...". Pensei: faz sentido, hoje, 22 anos depois. Daí joguei as pinturas fora e guardei os relatórios. De resto, ficaram as agendas (aquelas gooordas) da época adolescente que descrevem uma vida inteira de uma menina de 14 anos cheia de dúvidas. Cheia de dúvidas e cheia de entulhos...
No fim das contas o bom mesmo é nos descobrir através do tais entulhos, perceber o que mudou e o que resistiu ao tempo, pra ter certeza de que a renovação também é sempre um bom caminho...
Adorei o texto! Bjs, Cla

P.S. By the way, fiquei curiosa pra ver o desenho!

A digestora metanóica disse...

“Brother”:
Que idéia a sua, vê se pode me mandar um e-mail para avisar que o “brother” era você! Chamar de “Gigia” é a grande pista, meu amor...
Olha, dia 4 de março de 2005 vai entrar para a história como o dia em que venci os nazistas, depois de 12 ANOS!
Já que estamos falando de “entulhos”, ainda não consegui me desvencilhar de uma singela mensagem sua de Feliz Ano Novo, escrita em 1994 (nos conhecíamos há pouco mais de um ano). No bilhetinho, você dizia: “Gisele, você é uma pururuca irremediável, deve pesar uns 97 quilos, e não é à toa que está encalhada (salvem as baleias!!). Mas mesmo assim, por incrível que pareça, me amarro na tua. Te desejo um incrível Ano Novo, cheio de felicidades, realizações de todos os sonhos cor-de-rosa, etc, etc, etc (chega de babar ovos). Beijos H.W.A”.
Eu implico com essa sua linhagem germânica, mas relaxa que eu sempre soube entender suas manifestações de carinho, muito próprias (meio nazistas... hehehe) e muito sinceras.
Que bom que você revirou alguns dos seus sentimentos embolorados e eu pude receber palavras tão lindas da sua parte (já não era sem tempo!). Foi quase tão emocionante quanto ter sido sua madrinha de casamento...
Mas não se preocupe que não vou ficar vaidosa. Sempre existe a possibilidade de um contra-ataque de Berlim...
Beijos!!!

Anonymous disse...

Ermanchuscacerejah!!!!!To eu aqui de novo e queira tanto te achar online para conversarmos um pouquinho...
Li esse texto e me lembrei das vezes que paro para jogar fora algumas coisas e a sensacao que vem por dentro quando nos desfazemos de coisas que estavam guardadas a tanto tempo...
Ateh hoje me lembro do dia que resolvi jogar fora os meus vidros de perfume vazios que eu adorava guardar porque cada cheiro me fazia lembrar de uma epoca diferente da minha vida de quando eu usava cada um deles. Antes de joga-los fora, abri cada um deles enquanto fechava os olhos e lembrava de uma epoca da escola, ou do inicio do namoro, ou da epoca de solteirisse...enfim...
Parecia que os jogando fora ..estava jogando fora tambem as lembrancas...De certa forma, joguei fora a frequancia com que me lembrava de cada epoca porque nao tenho mais os vidros para abrir e cheirar), mas as lembrancas estao comigo ...claro...Mas a vida segue e algumas coisas necessariamente ficam para tras. E como dizia aquela frase que eu gosto tanto..."Para quê querer voltar se o que se tem saudade é não daquele lugar, mas daquela felicidade". Foi uma epoca...boa enquanto durou. Hoje já jogo os vidros fora no momento em que os perfumes terminam...hehehe...chega dessa paranoia...passou ...Um bj.Dani.

H. disse...

O rebento será intenso, Coitado. Um dia vc vai dizer pra ele: "meu filho, vc ainda vai sofrer muito!"

lefou disse...

Hoy que el mundo por fin mira como se merece a aquella que siempre estuvo ahi, sin ustedes el mundo seria distinto, sin colores ni perfumes, sin flores y lagrimas....
gracias por existir y despertar esperanzas en el corazon...
¡¡¡feliz dia de la mujer!!!

A digestora metanóica disse...

Clá, não jogue fora os relatórios de desenvolvimento, pelamordedeus! Esse tipo de "entulho" merece mesmo ser guardado, ainda mais porque são as pistas do passado de quem você seria hoje: genial e dançante!
Beijos! Adoro quando você aparece por aqui!

Irmazinha linda, essa mania de guardar os vidros vazios eu também tinha, peguei de você, lembra? Faz mesmo muito sentido, porque cheiro pra mim é uma coisa muito mágica... principalmente porque o olfato é o meu sentido mais apurado.
Mas, afinal, nós duas descobrimos que não precisamos mais dos vidros(eu também já havia jogado os meus fora). E isso é ainda mais mágico...

H., talvez todos os profetas se equivoquem...

lefou, muchas gracias por recordarlo. Solo no sé se soy una mujer para tantas colores, flores y lágrimas... (perfumes por supuesto. jejejeje).
Besos

Ermanchusca disse...

OI Ermanchusca!!!
Cade o post dessa semana??? Hoje já é dia 14 e vc nao escreveu mais nada...garanto que todos os "leitores" estao aguardando a reflexao da semana, assim como eu estou ...se bem que...vou poder ter a reflexao da semana ao vivo !!!!!!!!!
Um beijo.
Dani

Å®t Øf £övë disse...

Tenho essa musica ainda em vinil,e por vezes ainda a ouço.
É um single com o busto desenhado do Vinicius a branco com o fundo preto.
Bjs.

Anonymous disse...

Não jogar o quadro fora = amor frustado.

Priscila disse...

Gigia: "que presunção, alguém achar que te conhece"
Realmente!
Cada texto seu me supreende. Devorei ele.
Muitas vezes me pego pensando porque guardei certas coisas, certos desenhos da faculdade. Fico lembrando o que pensei na hora que guardei, e às vezes acho os motivos ricículos. Como se o modo como eu pensava na época fosse surreal. Acho que é comum, faz parte do amadurecimento.

O melhor é pegar esses guardados e relembrar junto com as pessoas certas. Outro dia achei uma fita cassete atiga que tinha gravado com minha mãe e minha irmã só pra testar se o gravador tava funcionando. Eram só baboseiras, risadas e minha irmã imitando o Gil Gomes!!!! Ouvimos juntas, rimos e acabamos chorando, com aquele choro em que você não sabe mais se ri ou se chora.
Muito bom...

Beijão
Pri

Eduardo Ferreira disse...

Viche! Que belo texto! Procurei no google pelo nome do meu blog (digerindo arte), e topei com o seu no final da página (ainda bem o meu estava em primeiro! rs), e resolvi ver do que se tratava... E deparei com um belo texto, absurdamente bem escrito e com uma pitada sutil e bem dada de poesia... animalmente animal!