terça-feira, fevereiro 15, 2005

Quando tenho medo de escolher só por covardia

Já faz um tempo tenho tentado ser mais tolerante com os meus próprios erros e com os dos outros. Busco não me torturar com minhas “culpas cristãs”, porque se eu ficar simplesmente me auto-flagelando nunca me movo em direção a mudanças concretas. Procuro me perguntar sobre as opções que quero fazer, para eu também poder defender os meus valores. Não com o intuito de me fechar para pensamentos diferentes ou propostas que destoam dos meus conceitos e “pré-conceitos”, de me armar para melhor me proteger. Que nada. Só quero que sonhos impulsionem meu caminhar; quero um alvo, que quase sempre mude de lugar, porque, muitas vezes, só mesmo o desvio me faz prosseguir.

No meu modo de ter fé, não acredito que Deus tenha um caminho prontinho para toda a humanidade percorrer. Aliás, creio mesmo é que Ele está de saco cheio da gente se repetir tanto e brigar para defender certas verdades, em vez de criar outras muito mais bacanas. Porque nisso a gente se aprisiona, olha a vida inteira a mesma estrada empoeirada, quando podíamos olhar pro céu, botar asas nas costas e voar sem rumo por aí.

Meus pais não desejaram por mim, apesar de já terem sido contra certas minhas escolhas. Minha mãe não gostava que eu fizesse cabaninhas com as almofadas do sofá da sala, nem que eu me trancasse no armário pra ler, nem que eu escalasse a soleira da porta imitando o homem-aranha, nem que eu grudasse o ouvido na caixa de som do rádio quando tocava uma música que eu gostava. Nem que eu vivesse pendurada nos galhos das árvores nos fins-de-semana no sítio, que eu comesse fruta demais antes do almoço, que eu andasse que nem um moleque, que eu me sujasse na lama, tomasse banho de chuva, subisse no telhado da casa, que eu abraçasse a filha da caseira pobre porque eu sempre voltava infestada de piolhos. Pior de tudo eram os cachorros vira-latas que viravam meus confidentes, com olhinhos compreensivos e orelhas atentas, e sempre me deixavam como herança um carrapato no umbigo, o lugar mais difícil de arrancar.

Aos onze anos, com a separação, fiquei morando com meu pai e dessa vez foi ele quem compôs a lista de preocupações com tudo o que estivesse me empolgando no momento. Capoeira era muito violento para meninas, movimento estudantil e passeatas não eram para a minha idade, igreja só para fanáticos, meus vários amigos o deixavam zonzo. E continuava com as “rugas” pelas minhas escolhas mais banais... “se ficar em casa lendo o tempo inteiro seu corpo vai enferrujar; exercício físico em excesso causa estresse muscular. Tomar sol é preciso; praia todos os dias é um absurdo, mesmo nas férias”. Anos mais tarde, ele foi contra o vestibular para jornalismo, porque eu não ia arranjar emprego depois. Há uns meses, reclamou que eu estava trabalhando demais e que não dava mais atenção pra ele.

Isso tudo me provoca uma vontade danada de riso incontido. Acabei fazendo o que queria, o que listei e tanto mais, até demais. Só que, mesmo hoje, quando estou bastante implicante (leia-se na TPM), acuso meu pai de não ter querido filha, mas uma bonequinha, pra ele manipular. No fundo acho só que ele não soube lidar comigo em alguns momentos, nem eu com ele, e esta é a prova mais saudável que eu não era uma bonequinha, porque senão vinha com folheto de instruções.

A consciência de que sou responsável pelas minhas escolhas me imobiliza às vezes, porque, de vez em quando, queria muito estar segura de que vou acertar. Mas sei que essa é uma das minhas tantas idéias babacas, porque se eu, com certeza só da minha insignificância, não venho com um manual de instruções, que dirá o mundo, que é muito maior e nunca mudou só porque eu nasci.

Hoje me sinto mais livre do que jamais antes, e isso é assustador. Tenho medo porque, apesar de livre, talvez continue com o pensamento escravizado. Tenho medo de a minha liberdade ser uma forma de castrar o outro. Medo de poder fazer, mas esperar até que ajam por mim. De ter forças para correr, mas me paralisar porque ninguém deu a ordem de partir. De saber o meu caminho, mas não andar por falta de companhia, porque ser livre muitas vezes é estar sozinho.

14 comentários:

Ritinha disse...

Como te percebo amiga...
Também eu tenho tido o pânico de decidir e deixo-me andar... ainda que saiba que este caminho é errado e turtuoso continuo nele...
Afinal que outro caminho sei eu?

O Micróbio disse...

"A liberdade, ao fim e ao cabo, não é senão a capacidade de viver com as consequências das próprias decisões."
(James Mullen)

Anonymous disse...

Ai, ai, ai....eu entrei aqui hoje só para dizer que adorei nosso domingo e que estou trabalhando e fazendo tantas coisa que mal tenho tempo para cuidar de mim mesma( entenda-se "ler-coisas-que gosto").Mas depois de ler esse texto...ui,ui,ui...devo dizer, no nosso próximo encontro vou de mordaça.Beijos

A digestora metanóica disse...

Ritinha, é melhor que continuemos a andar...

Micróbio, obrigada pelo pensamento. James Mullen tem um poder de síntese infinitamente maior que o meu :)

Mônica, estava sentindo sua falta! O seu "sumiço" já rendeu uns papos muito engraçados... Beijos!

lefou disse...

si ud viniera con un manual de operacion desde el nacimiento, yo ya lo hubiese comprado...
yo siempre he creido que solo se debe tener miedo al miedo, puesto que es el miedo el que nos impide realizar grandes cosas...
No tengas miedo a equivocarte, quien nace sabiendo? r= nadie, absolutamente nadie, negarte la oportunidad de equivocarte es tanto como negarte la oportunidad de ser. Las imperfecciones son las que hacen al hombre, no sus perfecciones.
Y respecto a la libertad, cada quien elige sus propias cadenas, me parece normal que te sientas asi, es el momento en el que se esta evolucionando, la digestora de ayer no sera la de mañana, solo aprende a identificarte y aceptarte..
muitos beijos

Rodolpho disse...

Amiga me encontrei nesse texto, eu vi minha infancia passando como um filminho... eu correndo da minha mae pra nao apanhar por que tinha desfeito a arrumacao das cores em ordem gradiente das almofadas da sala para fazer cabaninha, ou dos tapas que eu levava por escalar a soleira da porta, nunca tive piolhos apesar de me dar com os filhos do caseiro, por que minha cabeca sempre foi raspada, isso na verdade me causou um trauma infantil, eu sempre via a professoara com maior cuidado olhando com carinho a cabeca de um por um pra ver se tinha piolho e quando chegava minha vez ela dizia: Ah rodolfo!! volta pro seu lugar vc e careca, eu quase morria, sempre vi meus amigos ricos da escola comendo dois danoninhos sem separar os potinhos, eles abriam a tampinha dos dois de uma vez e comiam hehe minha mae nunca me deixou fazer isso :( coisas da infancia!
Mas em compensacao foi a primeira coisa que fiz quando fui morar sozinho, nada de festa ou bacanal !! bandeijinha de danoninho, dois de uma vez, sem separar os potinhos hehhehe.

Minha mae nunca me deixou fazer a maioria das coisas que os outro meninos faziam ,artes marciais era violento d+, soltar pipa cortava a mao e podia ser atropelado correndo atras de pipa, bola de gude e jogo... da briga e eu podia me machucar, futebol na rua nem pensar....... saldo do jogo!? Continuo sendo o cara que se vistia de marinheirinho, minha mae teve minha eposca de menino super tranquila.. claro que um pequeno incendio aqui outro ali, uma inundacao, os cabelos da minha irma que eu prendi no ventilador uma vez.. mas nada que uma tesoura nao resolvesse, sao detalhes perto da minha jornada quanse autista pela infancia. Com direito a amigos imaginarios e tudo mais:)

As rugas da minha mae viriam muito tempo depois, quando ouvi o chamado da vida e tive de atender heheh.
Foi a hora que eu colei as minhas asinhas e voei por ai.. na verdade continuo voando, mesmo tendo um bando de "molekes" com seus respectivos estilingues sempre me acertando boas pedradas, mas continuo meu caminho sempre em busca de novas opertunidades, de desvios das rotas habituais, na verdade se minha vida fosse um livro, mesmo que um livrinho de bolso, feito de papel reciclado 75 gramas, escrito por um colunista de quinta de jornal a beira da falencia, teria obrigatoriamente um capitulo dedicado aos desvios, e acho que mais um totalmente dedicado a superinterpretacao e sua importancia na vida moderna, mas nao poderia faltar um sobre as deformacoes e contradicoes nas declaracoes da minha familia a respeito do meu tao precioso e brilhante futuro.
Um manual do fazer e nao fazer em 10 licoes, como vc miga tmb acuso minha mae de ter modelado um marinheirinho preto de uma figa, tambem esperando me manipular, mas como tambem apesar de muito procurarem... nao havia pilhas nem manual de instrucoes incluido.
A incerteza do acerto tmb me imobiliza, mas po! vc mesmo me ensinou que a estabilidade e a morte, ate desenho de maquina de frequencia cardiaca oscila.. quando fica estavel e por que o cara bateu as botas!!!
Estabilidade e mornidao to fora! quero meu parzinho de asas e muito ceu pra voar, muitos desvios e bons ventos pra nos levar pra lugar seguro, ate que outro lugar seguro surja.
E medo de solidao miga.... nao tem como nao ter, mas sozinha tu nao fica por que nao a de ficar por que vc tem rodolfo para ser seu par :)


Te amo e sei que com paciencia, uma boa mesa de travessa com carpaccio e boa conversa qualquer duvida aqui expressa sera sanada ;)

Do seu fa admirador nada secreto
O pedreiro

Ps: espero nao ter pago nenhum mico literario ;)

A digestora metanóica disse...

Rodolpho,
apesar de já nos conhecermos há quase dez anos, acho que nunca tínhamos falado tanto da nossa infância, não? Eu já sabia da história do marinheirinho, de algumas castrações, mas nunca o desabafo tinha sido tão intenso como neste nosso "exorcismo-literário-coltetivo".
Você não precisa mais colar asinha nenhuma, porque, de alguma forma, em algum momento de sua vida, elas começaram a crescer em você, naturalmente, genuinamente.
Poxa, meu amigo alado, que bom que você mantém guardadinhas nossas conversas, até as que parecem ser mais bobas, porque eu também tenho um cantinho especial pra nossas divagações sobre a vida, as gargalhadas quando não queremos pensar em mais nada, a trilha sonora da sua gaita...
Obrigada pela interação aqui no digerindo, pela manifestação pública de carinho. Eu amo você e tenho muito orgulho de lhe chamar de amigo. Se acha que sou sua maior "assessora de imprensa" espera só pra ver quando você estiver na Pixar... qualquer animação em cartaz no Rio de Janeiro vai bater recorde de bilheteria, eu garanto!
Beijos, beijos, beijos!

Hugo disse...

Querida, conheci poucos seres humanos tão humanos quanto vc. Pouquíssimas certezas e muitas, muitas dúvidas. Assume sua humanidade por natureza contraditória sem medo de ser feliz. Não sei se vc leu Epicuro. Se não leu, intuiu por conta própria que o desvio é a rota para a liberdade. Te falei outro dia o que minha mãe disse pra mim: "Meu filho, vc ainda vai sofrer muito". repasso as palavras pra vc, "iluminada e atormentada". Sem ares de maldição, mas como preço a pagar pela liberdade que almeja, e que é a coisa mais linda que alguém pode almejar. Saudações de alguém da mesma estirpe condenada a cem anos de solidão...

Anonymous disse...

O que um texto bom pode provocar....Li os comentários do seu texto e fiquei indócil querendo falar , pedindo a vez aí para o Rodolpho, para o HUgo e todos que comentaram.
Ao contrário das situações apresentadas, minha mãe me ensinou a fazer cabanas com os lençóis de linho do enxoval dela, amarrando-os na cabeceira da cama ; me ensinou a brincar com personagens que eu mal conseguia identificar quem eram, mas sabia que eles estavam ali, sendo o freguês da papelaria (imaginária), o paciente do meu hospital ( imaginário), os piratas que estavam dispostos a encontrar o tesouro que ela escondia nos jardins do Parque Lage para que eu e meus primos encontrássemos antes deles ( os piratas), e que delícia achar aquele bauzinho de lata cheio de moedinhas de chocolate, mirabel, e outras delícias comestíveis da minha infância.
Ela incentivou o Clube de Teatro da rua, que a sede , lógico era na minha casa e os 13 integrantes estavam sempre reunidos ali para discutirmos o futuro texto a ser encenado e nunca encenamos nem Chapeuzinho Vermelho.
Enfim, fui encorajada de todas as formas, por ela em especial, a ir ao encontro dos sonhos, das coisas que me fizessem sentir a vida pulsando em cada pedacinho de mim.
E no entanto, tenho medos, de muitos tipos e vivo mudando o rumo da minha vida. A diversidade de caminhos é impressionante!
Tenho medos sim e o maior de todos é o de um dia acreditar que encontrei o caminho "certo" e acabar a brincadeira.Beijos Mônica

A digestora metanóica disse...

Lefou:
Se yo pudiera compraria yo misma mi manual de operación. Pero como no se puede buscarlo y tanpoco encontrarlo en ninguna parte, sigo creando mis proprios senderos equivocados.

Hugo:
Não tomo como maldição as suas palavras, aliás, agradeço por retransmiti-las, porque entendi isso como um inesperado gesto de carinho da sua parte. Espero mesmo sofrer, porque pior é não ser livre, não é assim?
Você tem se tornado cada vez mais humano para mim, e acho que você sabe do que estou falando. Afinal, por onde andou esses anos todos, menino? *rs*
Saudações, Rangel, saudações...

Monica:
Ai, ai... que gostosa a sua história. A multiplicidade de caminhos é mesmo fascinate, mas que bom que nessas muitas bifurcações há tantas possibilidades de encontro. Apesar dos diferentes sonhos e frustrações infantis, seja lá em que época eles foram vividos.
Beijos muito, mas muito carinhosos mesmo!

Arturo Rangel disse...

Fala Gifisse!
Nem precisa dizer quem sou né?

Pow, lembrei mesmo daqueles ´´treinamentos´´ que faziamos juntos.

Acho que fui eu quem ajudei a criar esse ´´monstro´´ que batia em todos os meninos do colégio.
Lembra que vinha me chamar porque voce estava brigando com 5 meninos do colégio? Entao, o pedido nao era para o irmao ajudar a irmã e sim para livrar os 5 mininos da minha irmã!!
ehehehe
lembra disso?

E outra, adorei o parágrafo que cita as brincadeiras de infancia, carrapatos, lama... daí que em quase todos estavamos juntos. Lembra quando tomávamos banho na piscina de lama lá no sitio???



bjs
Seu Irmao,
Arturo Rangel

A digestora metanóica disse...

Ai, ai, irmão... não precisa me entregar tanto assim, né? Hehehe
O mais engraçado é que não me lembro de nenhuma vez que mamãe tenha brigado comigo por eu ter batido nos meninos do colégio. As mães deles sim é que devem ter feito o diabo com os pobrezinhos, por eles terem apanhado de mulher! Hahaha

Deia Vazquez disse...

Lindinha,
Deixar que ajam pela gente pode ser interessante, nao eh mesmo? Esperar pra dar a mao na hora de partir, para, juntos andar os varios caminhos tb. A vida eh uma experiencia individual, mas sem o outro...nao justifica. Confio e sempre confiarei nas suas escolhas. vc sempre sera "uma justifica a mais" para lembrar o significado da liberdade que buscamos.
beijos
Miguinis

A digestora metanóica disse...

Ai, Miguinis... como sinto sua falta nas minhas manhãs de domingos, da sua paz.
Às vezes preciso tanto do seu abraço...